Casimiro, 48 anos, e José, 65, resistem ao novo coronavírus na segurança possível do centro de acolhimento para sem-abrigo que a delegação de Braga da Cruz Vermelha Portuguesa tem na freguesia de Nogueira. Bem mais abaixo, Benjamim e António preferem continuar nas ruas da cidade e é daí que vivem um dos momentos que está já a deixar profundas cicatrizes neste segundo milénio.
Os quatro queixam-se do olhar de soslaio e amedrontado da população e, frequentemente, hostil, como se eles fossem o próprio vírus.
Sem a máscara, as palavras de José Barroso soam a revolta e algum desalento: “acha que temos lepra?”. Casimiro Lima reformula: “ou peste?”.
Desde que o covid-19 “caiu mortal, como uma bomba” no país, que os dois utentes do centro, onde encontram um tecto temporário, travam uma guerra pessoal, e não só contra o novo e invisível coronavírus, mas também noutras frentes.
Não querem mais essa chaga nas suas vidas.
“Atraiçoado pelo mundo”, é assim que diz sentir-se António, trinta e tal anos, pouco dado a conversa. Apesar de não gostar de “instituições” espera que a carrinha da CVP passe no centro da Cidade dos Arcebispos para lhe deixar “o saquinho da comida”, como acontece diariamente.
Enquanto espera, crava cigarros – e a contragosto- ensaia uma resposta à pergunta de José e Casimiro. “Desde que apareceu este c…..o do Covid, que as pessoas fogem de nós. Parece que temos peçonha!”, diz, rude.
É Benjamim Silva, a viver na rua “há por aí 17, 18 anos”, que explica o porquê do desabafa dos seus pares “lá de cima”, do Centro de Acolhimento Temporário (CAT).
“No meu pensar, também sinto que me olham com outros olhos. As pessoas julgam que temos o vírus por vivermos na rua. Têm medo. Mas não me posso queixar muito, só de uma ou duas pessoas. É sempre menos uma ou duas ‘ajudinhas’. Isso custa muito, a mim ou qualquer outro que como eu durma na rua. Mas isto é só o meu pensar”, diz Benjamim, nascido há 46 anos na Póvoa de Lanhoso.
Nas imediações do Pingo Doce da St.ª Tecla, onde tem o seu território, Benjamim, no ‘seu pensar’, acrescenta: “as pessoas sentem-se cercadas, pelo covid. É covid-19 nos jornais, na televisão, em todo o lado, um exagero. E depois ficam com medo de tudo, de todos”. Diz que “é natural”.
“Quem vive na rua também se sente cercado. No meu pensar, quem se sente cercado, acaba isolado, acaba por sentir discriminado, e quem é discriminado fica com raiva e pode perder a cabeça, isso é muito mau”, filosofa, fazendo jus à alcunha de ‘Poeta’, atribuída pelos moradores daquela zona.
O ‘Poeta’ gosta de cavaqueira – “quando não tenho com quem falar, falo sozinho”. Por isso pergunta e responde em jeito de aviso: “Sabe porque é que os árabes atacaram os Estados Unidos? Foi porque se sentiam cercados e discriminados pelos Estados Unidos, e vai daí atacaram. Mas isto é o meu pensar”.
António e o Poeta nunca quiseram ajuda de qualquer instituição, pelo em relação a alojamento. Aparentemente preferem a liberdade da rua à “institucionalização”, como diria António.
Já Casimiro e José, com a ajuda da CVP, dão os primeiros passos para a reintegração social, mas pela frente ainda têm um longo caminho.
“O vírus não tem pernas para andar”, atira então Casimiro. “Nem asas para voar”, completa José.
Paulo Nogueira, 45 anos, junta-se a Casimiro e José para sustentar que “nós é que devíamos ter medo das outras pessoas e não elas de nós, que quando nos veem fogem”.
“Fizemos quarentena, cumprimos todas as recomendações e estamos ‘limpos’ de covid-9”, diz.
Casimiro assume o papel de porta-voz de todos os residentes do CAT: “temos que ter uma palavra de reconhecimento para com toda a gente que aqui trabalha, desde o pessoal da cozinha aos técnicos. Sobretudo ao vigilante senhor Alfredo e, em particular, à dr.ª Catarina Santos que fez quarentena aqui connosco, longe da família e dos amigos”, declara solene.
“Com ajuda deles e a graça de Deus, estamos todos bem”, sublinha José, acariciando a cabe da sua cadela pastor-alemão, a Laika.
Mais racional, Paulo atira: “Graça a nós também”, atira.
Já desertados da vida uma vez, não querem agora uma nova marginalização (e outros ostracismos) a armadilhar o percurso. Esperam que a pandemia não seja (outro) obstáculo, porque, como confessa Paulo, “chegar aqui nem sempre foi fácil”.
“Não é fácil para nós. Mas no meu pensar. não é fácil para ninguém”. Palavra do Poeta.
Fernando Gualtieri (CP 1200)
AMANHÃ, QUINTA-FEIRA, PARTE 2
Quando “gente difícil” é exemplo de cidadania