Os Estados Unidos vivem dias de tensão e violência nas ruas de várias cidades. A causa é conhecida de todos: a morte às mãos da polícia de Minneapolis de George Floyd. No Minnesota os negros formam apenas 5% da população, mas nos últimos seis anos foram 20% do total de mortos pelas autoridades policiais.
Em termos globais, os afro-americanos têm 2,5 vezes mais hipóteses de serem mortos pela polícia nos EUA. No ano passado, 24% do total de 1099 pessoas mortas pela polícia eram desta minoria da população (13% do total), assegura a organização Mapping Police Violence.
Para o presidente, porém, a prioridade é outra. No domingo, Donald Trump tentou lançar as culpas dos protestos generalizados contra os “anarquistas de esquerda radical”, bem como para os meios de comunicação social, que estão “a fazer tudo ao seu alcance para fomentar o ódio e a anarquia”.
O presidente afirmou que os activistas de extrema-esquerda antifa têm liderado os confrontos com a polícia e as pilhagens em várias cidades dos EUA.
E em consequência, afirmou que o país vai passar a considerar os antifa como uma organização terrorista.
O procurador-geral William Barr secundou de imediato as alegações de Trump. “Em muitos lugares parece que a violência é planeada, organizada e conduzida por grupos de anarquistas e extremistas de extrema-esquerda que usam táticas semelhantes às do antifa”.
Até ao momento não há provas de que algum grupo seja o principal motor pela escalada dos protestos que começaram após a morte de George Floyd no dia 25 de Maio, quando o agente da polícia de Minneapolis Derek Chauvin (entretanto demitido e quatro dias depois detido) estrangulou o pescoço de Floyd com o joelho.
Dois funcionários do Departamento de Defesa apontaram o dedo a um grupo antifa que terá divulgado no sábado, no Telegram, uma mensagem de incentivo à violência contra as tropas da Guarda Nacional.
INFILTRADOS?
O governador do Minnesota, o democrata Tim Walz, disse à imprensa que tinha ouvido relatos não confirmados de que supremacistas brancos tinham viajado de outros locais para fomentar a violência no seu estado.
Para a investigadora J.J. MacNab, da Universidade George Washington, não há dúvidas de que viu nas multidões membros de grupos de extrema-direita que acompanha em grupos privados no Facebook.
Megan Squire, uma professora de informática da Universidade de Elon que acompanha o extremismo online, viu imagens de pelo menos quatro membros do grupo de extrema-direita Proud Boys num protesto no sábado, em Raleigh, na Carolina do Norte.
O QUE É O ANTIFA?
Como o nome deixa adivinhar, é um movimento antifascista. A organização original chamada Antifa foi a Antifaschistische Aktion, criada pelo Partido Comunista da Alemanha em 1932, e teve vida breve, até à ascensão dos fascistas, ou, em maior rigor dos nazis ao poder, no ano seguinte. Também em Itália ao movimento fascista liderado por Mussolini a resistência existiu.
O movimento é composto por vários grupos de extrema-esquerda, autónomos e militantes, de anarquistas a comunistas, entre outras facções. O que os une não é um projecto de poder, mas a recusa: a recusa do fascismo, a recusa do discurso nacionalista e a recusa do racismo. Mais tarde, no pós-guerra, é no Reino Unido que o movimento revive. Com a queda do Muro de Berlim e a reunificação alemã, o ressurgimento dos movimentos nacionalistas é combatido pelo antifa.
COMO SE ORGANIZAM?
O historiador Mark Bray, autor do livro Antifa – The anti-fascist handbook, crê que são poucos os verdadeiros militantes antifascistas nos EUA, até porque não há uma organização estabelecida com hierarquia. Ser antifa faz parte de uma política, de uma ideologia.
“É impossível determinar o número exacto de pessoas que pertencem a grupos antifa , porque os membros escondem as suas actividades políticas das forças policiais e da extrema direita, e as preocupações com a infiltração e as elevadas expectativas de empenhamento mantêm as dimensões dos grupos bastante reduzidas. Basicamente, não há, em parte alguma, anarquistas e membros de grupos antifa suficientes para, por si sós, terem conseguido uma destruição tão espantosa”,escreveu no Washington Post.
SÃO VIOLENTOS?
Os activistas têm como missão combater o fascismo, e isso inclui, se necessário, métodos violentos, no que consideram um mal menor.
“Creio que é verdade que a maioria dos membros, se não todos, apoiam de todo o coração a autodefesa militante contra a polícia e a destruição direccionada dos bens da polícia e do capitalismo que a acompanhou esta semana”, assevera Bray. No entanto, como o professor de Dartmouth College lembra, não há registo de terem causado alguma morte, ao contrário da extrema-direita.
Aliás, em termos mais genéricos, os activistas de esquerda foram responsáveis por apenas 2% dos homicídios cometidos por extremistas políticos nos Estados Unidos durante a última década, enquanto os militantes de extrema-direita foram responsáveis por 74%, segundo jornalista e investigadora Caroline Orr, em artigo que escreveu em defesa do antifa.
Nesse texto de 2019, Orr nota que a administração Trump vê os manifestantes antifascistas como uma ameaça terrorista interna crescente, embora a violência que aumentou desde que chegou ao poder foi a levada a cabo pela extrema-direita.
MILITANTES E CRIMINOSOS?
Essa criminalização da extrema-esquerda militante remonta pelo menos a Setembro de 2017, quando o Departamento de Segurança Interna se referia aos manifestantes antifascistas como “terroristas domésticos” em documentos, como o Politico noticiou então.
No ano seguinte, os republicanos tentaram aprovar no Congresso um projeto de lei chamado ‘Unmasking Antifa Act of 2018’, que procurava a prisão de qualquer activista que, usando uma máscara, “ferisse, oprimisse, ameaçasse ou intimidasse” outra pessoa que exercesse os seus direitos ao abrigo da Primeira Emenda.
Em Julho de 2019, os senadores Ted Cruz e Bill Cassidy voltaram à carga, ao apresentarem uma resolução para tornar o antifa uma organização terrorista. Segundo Orr, “a linguagem do projecto de lei usa os termos ‘antifa’ e ‘activistas de esquerda’ de forma intercambiável, sugerindo que a legislação tem mais a ver com a criminalização da dissidência do que com o combate ao terrorismo”.
Trump mostrou então o seu apoio: “Seria mais fácil para a polícia fazer o seu trabalho”.
IGUAIS AOS FASCISTAS?
Em Agosto de 2017, os antifascistas saíram às ruas de Charlottesville para uma contra-manifestação. Ali decorria uma manifestação cujo objectivo era o de unir os grupos de extrema-direita, de supremacistas brancos e neonazis.
Ficou para a história o atropelamento em massa cometido por um fascista, que matou uma pessoa e feriu quase três dezenas, mas também ficou para a história a declaração de Trump de que havia pessoas “muito boas” de ambos os lados da barricada, ou seja, que a extrema-esquerda e a extrema-direita são forças moralmente equivalentes.
“A destruição de propriedade não é equiparável a assassínios em massa, as acções individuais espontâneas não são comparáveis à violência sistémica e a acção de rua não é o mesmo que o terrorismo supremacista branco”, nota Orr.
E quanto ao caso norte-americano: “O movimento antifascista não está integrado no establishment democrata, nem os representa. Os democratas não precisam de denunciar em voz alta os antifascistas, porque os antifascistas nunca foram amplamente apoiados pelo Partido Democrata. O mesmo não se pode dizer da extrema-direita, que encontrou um lar no Partido Republicano e um líder no actual presidente republicano”.
PORQUE CRESCEU A SUA VISIBILIDADE?
Os antifas nos Estados Unidos inspiraram-se na actividade dos movimentos europeus no final dos anos 80, mais pela vertente do combate ao racismo mas perdera gás já no século XXI. “O movimento acelerou de facto com a lamentável ascensão da extrema-direita que segue o presidente Trump”, disse Mark Bray em entrevista à Democracy Now.
Bray explica: “Há sempre potencial para os pequenos movimentos se tornarem grandes. Uma das lições do século XX é que as pessoas não levaram o fascismo e o nazismo a sério até ser demasiado tarde. Esse erro não voltará a ser cometido pelos antifascistas. Estes compreendem que qualquer manifestação dessas políticas é perigosa e tem de ser confrontada”.
César Avó/Diário de Notícias