Quando a água tomou conta dos campos agrícolas e entrou casas adentro, a população de Vilar da Veiga deu-se conta que estava metida numa grande alhada. Apesar de estar avisada que um dia os caudais dos rios Caldo e Cávado se juntariam para encher a recém-construída Barragem da Caniçada, a gente da aldeia de Terras de Bouro só teve tempo de arregaçar as calças e as saias e fugir.
O que aconteceu a 10 de Outubro de 1955 e nas semanas anteriores dava para um filme ou uma telenovela daquelas que começa com uma tragédia e termina com um final a contento de todos. O primeiro episódio poderia chamar-se ‘Quando a Água Bateu à Porta’, um outro ‘O Assalto ao Cemitério’ e, pelo meio, ‘O Padre sem Medo’.
Tudo começou quando nos anos 50 do século passado Oliveira Salazar autorizou a construção da Barragem da Caniçada. Logo se ficou a saber que grandes parcelas das povoações de Rio Caldo, Valdozende e Vilar da Veiga ficariam submersas.
Foi nesse domingo chuvoso de 1955 que terrenos agrícolas, largas dezenas de casas, estábulos, alfaias agrícolas, o cemitério e uma escola primária ficaram debaixo de água.
Vilar Antiga como hoje é referida pelos mais velhos, a “gente grande”, viveu, então, “uma hora de grande sofrimento”.
“O povo sabia que mais dia, menos dia, a água ia chegar, mas não quis saber. Deixou-se andar», conta Manuel Ferreira, o ‘Matateu’, como ficou conhecido por ao serviço do Os Cucanas de Vilar da Veiga – “uma equipa feita à toa” – ter cometido a proeza de marcar ao poderoso Caniçada, um golaço ao estilo de Matateu, o famoso avançado e internacional de Os Belenenses.
“Acho que o povo não acreditava que Vilar da Veiga fosse inundado. E foi adiando a mudança, até que água começou a entrar pelas casas. Foi um pandemónio”, diz.
“Foi uma coisa ruim ver a água afogar aldeia”, resume.
Apesar de ser ainda “muito criança”, a mãe de Isabel Pacheco, funcionária da Junta de Freguesia, também não esqueceu aquele momento de “grande angústia e desespero”.
“Minha mãe conta que as pessoas foram apanhadas de surpresa já com a água a bater na porta”, conta Isabel.
“Não houve tem para nada. Foi uma correria para salvar alguma coisinha das casas”, confirma Manuel ‘Matateu, que aos 86 anos recorda que muitos por pouco não conseguiam sequer retirar do interior “algumas peças de mobília”. Na altura com 20 anos, ainda tem gravada a imagem de pessoas, entre gritos, “a tentar salvar o pouco que tinham”.
Conta ainda que, segundo se constou na época, um idoso acamado teve que ser tirado à pressa ainda encima do colchão. “Podia ter morrido afogado se os vizinhos não fossem tirá-lo da casa à força. Não queria sair da casa onde viveu sempre”.
“(…) Houve pessoas que tiveram de ser tiradas das casas de forma violenta quando a água estava mesmo a entrar dentro das casas”, confirma António José Soares Pereira (AJSP) na obra ‘Vidas de um Povo’ (ed. autor, 2016).
“É que no geral as pessoas estavam incrédulas, não acreditavam na realidade que as esperava e foram adiando o momento do despejo, o que veio causar toda a confusão que se viveu”, escreve AJSP.
O Padre Ernesto e o seu rebanho
Na freguesia, a mais atingida pelo empreendimento hidroeléctrico, o Governo encontrou grande resistência, não só por que era evidente para todos que a vida a que estavam habituados acabaria, mas também por falta de esclarecimento e informação sobre as vantagens que a barragem traria para o desenvolvimento local. Salazar teve que recorrer à força.
Contudo, houve excepções. Houve, poucos é verdade, que tentaram lutar contra o inevitável. Um homem da terra decidiu levar o caso a tribunal para defender os direitos da aldeia. «O caso não deu em nada, ficou por ali», recorda ‘Matateu’.
É aqui que entra o episódio do “padre Ernesto”, um “padre sem medo”, que foi para os jornais “espingardear” em defesa do seu rebanho.
“Um homem de coragem” e “sem medo” de desafiar o Estado Novo e a sua polícia politica, a PVDE – Polícia Internacional e de Defesa do Estado (mais tarde PIDE) é assim que o lembram a ‘gente grande’.
O sacerdote foi afastado de Vilar e “o povo nunca mais soube dele, desapareceu”, conta ‘Matateu’ com um gesto de quem sabe mais do que conta.
Já as elites dominantes, nas mãos de quem estava as maiores propriedades, ficou, relata AJSP, “calada e mansa”.
Assalto ao cemitério
Se é verdade que mesmo avisada com vários meses de antecedência para o enchimento da barragem, a população “deixou-se andar”, também é verdade que tomou algumas precauções.
Uma delas foi a recuperação das ossadas dos familiares sepultados no cemitério. À socapa, claro. E este é um episódio que ninguém esqueceu.
Toda a ‘operação’ foi cuidadosamente planeada em segredo. ‘Matateu’ narra que a população esperou por uma “noite muito escura”, assegurando-se que não havia autoridade nas proximidades nem olhos indiscretos.
Um a um, os túmulos foram abertos e retirados os restos mortais, que as famílias se apressaram a sepultar noutro local. Já os cadáveres mais recentes foram trasladados para um outro cemitério pela HICA – Hidroeléctrica do Cávado, responsável pela construção da barragem.
Foi tudo feito com o “maior respeito” pelos defuntos, assegura.
“Só Deus sabe”
Se os corpos dos entes queridos foram salvos das águas, pior sorte teve a ‘Primária’, mandada construir por uma família que “não quis saber mais para nada da escola”. “Uma pena”, afirma ‘Matateu’.
“Os três bailaricos de domingo que fazíamos em ponto diferentes da aldeia também acabaram para sempre”, desabafa. Os bailes eram “ponto de encontro sagrado” de novos e velhos e “uma festa” para toda a população, que nesses anos 50 do século passado somava 1.776 almas, quase meio milhar mais que as contadas pelos Censos de 2011…
Abandonado o Vilar Antigo, as famílias, que até então “viviam muito unidas, casa com casa, em comunidade” foram “cada uma para cada lado”.
“Alguns mudaram de concelho, muitos nunca mais se viram”, assegura o herói de Os Cucanas de Vilar da Veiga.
‘Matateu’ não foi para longe. Ficou em Admeus de Baixo, onde hoje vive.
Em ‘Vidas de um Povo’ um morador desabafou, enigmático, ao autor: “Só Deus Sabe o que se passou, antes da barragem”.
Referia-se, claro, aos “negócios” que envolveram os residentes e a HICA.
“(…) De uma forma geral toda a gente desta terra beneficiou com a construção da barragem de uma forma directa e outros de forma indirecta, os primeiros recebendo dinheiro pelos bens submersos e os segundos pelos melhoramentos que foram acontecendo e da qualidade de vida daí resultante (…)”, conta AJSP.
O jovem ‘Matateu’ foi um dos que ficaram a ganhar. Trocou a jorna de 13/14 escudos nas florestas pelos 23/24 escudos por dia na construção das pontes do Rio Caldo que passaram a ligar as margens da albufeira. “Uma fortuna naquele tempo”.
Em contrapartida, garante, a aldeia “não ganhou grande coisa com o negócio; a verdade é que não recebeu nada em troca”. A não ser as duas pontes de Edgar Cardoso, em substituição das que ficaram submersas, e uma estrada nova, também em substituição da antiga. “Foi troca por troca”.
Por isso, concluídos os processos de expropriação e respectivas indeminizações, não admira que os jovens inventassem uma “cantiga de nostalgia”.
“Adeus Vilar da Veiga que está perdido
Não quereis sair daí, mas tudo já está vendido”.
Fotos únicas e um segredo
Foi em Maio de 1954 quando acompanhava o pai num passeio de bicicleta, que o amarense Armando Martins deu de caras com uma “grande obra” nas imediações de Valdozende, já em Terras de Bouro.
Ali à sua frente estavam a ser erguidas duas pontes, ambas, ficou a saber depois, com assinatura do famoso engenheiro Egdar Cardoso, o mesmo que desenhou a Ponte da Arrábida, no Porto (1963).
Tratam-se das duas pontes do Rio Caldo, parte integrante das estradas nacionais 308 – que segue para a vila do Gerês – e 304 – que vem da zona do São Bento da Porta Aberta e segue para sul, rumo à EN 103, entre Braga e Chaves, ligando as margens da albufeira. Têm os tabuleiros construídos em laje de betão armado, feitos em pedra tosca proveniente da Póvoa do Lanhoso, Amares e Montariol.
Desenrascado na altura como agora aos 86 anos, o jovem Armando começou a fotografar aquela “enorme” empreitada, e passou a acompanhar a obra nos anos seguintes, nomeadamente quando a Barragem da Caniçada foi parcialmente esvaziada para trabalhos de fiscalização da estrutura.
O antigo fotojornalista, que ainda hoje colabora com o maior jornal em língua portuguesa nos Estados Unidos da América – o Luso Americano – apaixonou-se pela obra que tinha à sua frente.
“Falei com um dos encarregados sobre as pontes e acabei por lhe pedir se me deixavam ir lá acima aos tabuleiros que ainda estavam em construção, tirar umas fotos. O homem deixou e eu lá fui, sem qualquer medo da altura, que anda perto dos 60 metros”, conta com um grande sorriso de orgulho.
O segredo das pontes
Nas suas conversas com os técnicos, o fotógrafo descobriu um aspecto “inovador” e um “segredo” das pontes praticamente desconhecido.
“Cada pilar tem uma abertura na base para permitir a entrada da água para dentro dos mesmos, cujo nível sobe de acordo com o nível da água na albufeira, permitindo uma maior robustez dos pilares de sustentação dos tabuleiros das duas pontes”, explica.
“Não há dúvida que se tratou, na ocasião em que foram construídas em 1954, de uma técnica revolucionária do famoso arquitecto português Edgar Cardoso”, realça. Na imagem mais pequena é visível a “porta” de entrada da água.
As fotos que tirou, e que agora o jornal ‘O Amarense & Caderno de Terras de Bouro’ revela pela primeira vez na imprensa, mostram, não só a dimensão do projecto da Barragem da Caniçada, mas faz adivinhar o impacto que aquela infra-estrutura hidroeléctrica teve na paisagem. Ao mesmo tempo, levanta o véu sobre o embate daquele aproveitamento hidroeléctrico na vida das populações, que viram a sua vida “virada do avesso” pelo enchimento da Barragem e consequente submersão de um número sem conta de habitações e campos agrícolas, de onde as gentes locais tiravam sustento.
“Por debaixo do espelho de água está um modo de vida comunitário que desapareceu”, sublinha Armando Martins, regressado há poucos anos dos Estados Unidos onde viveu 50 anos, sempre de máquina fotográfica a tiracolo, ora fotografando os grandes nomes de canção portuguesa e estrangeira, ora os eventos políticos e sociais da comunidade lusa da Califórnia.
Os registos fotográficos das pontes podem, afirma, “constituir uma mais valia” para a Câmara Municipal de Terras de Bouro que pretende, em parceira com a Câmara de Vieira do Minho, classificar as pontes de Rio Caldo como património de valor nacional junto da Direcção Regional da Cultura do Norte.
As pontes, uma em Terras de Bouro e outra em Vieira do Minho, foram construídas em 1954, tendo em vista a subida do nível das águas do Rio Cávado e a criação do espelho de água, consequências da construção da barragem da Caniçada.
“Delicadas, mas ao mesmo tempo de aspecto vigoroso, elegantes e bem integradas com a paisagem circundante, estas pontes são um símbolo da engenharia portuguesa daquele tempo”, referia a Câmara de Terras de Bouro no anuncio da intenção de avançar com a candidatura.
Para a autarquia presidida por Manuel Tibo, a candidatura “irá dignificar ainda mais esta sublime obra de engenharia”.
FERNANDO GUALTIERI
Reportagem publicada originalmente na edição de Maio do jornal O Amarense & Caderno de Terras de Bouro