Em Outubro de 2020, vivia-se o pico da 2.º vaga da Covid-19, Augusto Freitas alertava para o agravamento significativo do quadro clínico dos veteranos de guerra portadores da Perturbação de Stress Pós-Traumático (PSPT) resultante das restrições impostas, sobretudo o confinamento. O presidente da Associação Portuguesa dos Veteranos de Guerra (APVG), com sede em Braga, chamava à pandemia o “novo inimigo”. Depois da Guerra Colonial, estes homens vítimas de PSPT viam o seu estado agravar-se e as já frágeis relações familiares a deteriorar-se.
Agora, passado um ano, e em plena 5.ª vaga, cumpre-se a promessa de voltar à associação para, agora com a psicóloga Ana Fernandes, perceber como sobrevivem estes homens, que em Portugal serão entre 100 e 150 mil, não incluindo os militares que participaram nas missões no Kosovo, no Iraque, no Afeganistão ou os que ainda se encontram destacados na República Centro Africana.
Certo é que por detrás de cada palavra, de cada linha e nas entrelinhas se pode “ler” o que a confidencialidade e o sigilo não permitem que aqui seja dito.
Há cerca de 1 ano, o presidente da APVG dizia que os veteranos de guerra tinham sobrevivido à guerra, mas que a covid estava a matá-los psicologicamente. É já possível ter um quadro mais preciso do impacto da pandemia nos ex-combatentes com PSPT?
Estamos a falar de homens que, quando regressaram do Ultramar, devido à forma como eram vistos – e ainda hoje em dia o são – tiveram que silenciar as suas queixas e reprimir as suas vivências. Tudo isso exigiu deles recursos emocionais, cognitivos e comportamentais. A covid-19, a pandemia e as suas implicações, dado que tem alterado o sentimento de segurança das pessoas e a nossa ligação aos outros, exige ainda mais esses recursos. Infelizmente, nem todos têm essa capacidade de resiliência.
Neste sentido, temos tido dois quadros neste último ano. Aqueles que venho a acompanhar já com a PTSD diagnosticada, antes da pandemia, têm vindo a piorar ou a apresentar uma sintomatologia maior: pensamentos mais constantes e pesadelos com a guerra mais frequentes, humor instável, irritabilidade e, em alguns casos, alguma anestesia emocional. O que é normal, porque nos casos de PTSD crónica, os sintomas podem se tornar mais intensos em situações de vida mais stressantes.
Depois, temos aqueles que não tinham queixas, nem apresentavam qualquer quadro clínico e que começam a sentir-se perturbados, com sintomatologia do tipo ansiogénica e depressiva. Pode ser um reflexo do cansaço da pandemia que os obriga a ficar em casa e os limita no seu quotidiano, que implica uma diminuição dos recursos que antes eram acessíveis, ou seja, coloca em causa os mecanismos de adaptação que tinham.
Com mau resultado…
A pandemia acaba por exacerbar todos os problemas dos ex-combatentes, em alguns deles, contidos e fechados a sete chaves.
Em que aspecto é mais visível?
O isolamento social deles tem sido a maior agravante. A PTSD implica, por si só, um isolamento social que cria dificuldades nas relações interpessoais. Do pouco contacto social que tinham, desde ir ao café ao fundo da rua e encontrar-se com os amigos até aos convívios militares, agora nada disso tem sido possível.
Devido à pandemia…
Exacto. Tendo em conta que fazem parte dos grupos de risco devido à idade ou outras doenças associadas, as exigências da DGS tornam o quotidiano deles muito limitado. Refugiam-se em casa, não têm tanto contacto social e isolam-se mais, o que abre espaço a uma fluidez de pensamentos que não pára e, eventualmente, os conduz ao passado. O problema disto é que, com a quebra das suas rotinas e dos seus mecanismos de coping, não sabem como parar, como “deixar de pensar”.
Esse não “deixar de pensar” é comum a todos?
Uns têm a sorte de terem um pequeno terreno onde se podem distrair com as suas plantações, mas muitos não têm. Alguns têm a companhia das suas esposas enquanto outros são divorciados ou viúvos e vivem sozinhos, isolados. Combater esta solidão é o verdadeiro desafio.
É correcto dizer que os sucessivos recolheres obrigatórios e restrições foi um dos factores que mais afectou estes doentes?
Sim, os sucessivos recolheres obrigatórios e a sua durabilidade, principalmente. Um recolher obrigatório de uma semana é muito diferente e tem consequências diferentes de um recolher obrigatório de dois a três meses. Tem-se observado e dito pelas notícias que pessoas mentalmente estáveis e saudáveis começaram a mostrar algum desgaste emocional durante os confinamentos ao longo dos meses. O número de casos de ansiedade e depressão têm aumentado e/ou piorado. A PTSD é uma Perturbação de Ansiedade.
E no caso dos veteranos?
O que acontece no caso dos veteranos de guerra, tendo em conta o que observo em consultas, é que o isolamento social e a experiência de confinamento associada à pandemia remetem a um sentimento de privação de liberdade que reactiva neles emoções, memórias e as experiências do Ultramar.
Foram homens que já estiveram ‘presos’ em África: nos aquartelamentos, no meio do mato, em emboscadas, em campos de minas, etc… e agora vêem-se presos nas suas casas e, consequentemente, presos nas suas próprias mentes. E mais uma vez, eles “fecham-se a sete chaves” para não estarem expostos a coisas negativas que os façam perder o controlo. Estar neles mesmos, nestes momentos, não é um bom lugar para se estar.
Sendo pessoas já com alguma idade, e como tal “obrigadas” a permanecer em casa, a rodear-se de todos os cuidados, o relacionamento com a família foi afectado, ou, como sucedeu em algumas famílias, houve uma maior aproximação?
Nunca ninguém me falou de maior aproximação, no caso de veteranos de guerra, muito pelo contrário. Tenho clientes que têm os filhos e netos no estrangeiro, imigrados, e desde 2020 não se vêm ou estão juntos fisicamente, por exemplo. Ora por conta das limitações portuguesas ou pelas limitações dos países em questão. Para estes, os meses do Verão e o Natal foram muito solitários, uns optaram por nem celebrar ou decorar a casa.
Mesmo para quem não é doente, essa privação é muito dura…
É-lhes difícil gerir esta distância em tempos normais e, agora, acrescenta-se a constante preocupação de poder acontecer alguma coisa aos filhos ou netos (no caso de serem infectados) e não terem a possibilidade de os ver, falar ou estar com eles. Alturas em que nem viajar poderiam. E vice-versa, pelo que me contam, as preocupações dos filhos são iguais.
FERIDA INVISÍVEL
Além da alteração das rotinas diárias…
Certamente. Tive aqui avôs que iam buscar os netos à escola e ficavam com eles até ao final do horário de trabalho dos pais, outros que iam levá-los a outras atividades extracurriculares e deixaram de o puder fazer. Uns por medo e por precaução e outros a pedido dos próprios filhos, em prol da segurança deles. Estas pequenas rotinas deixaram de existir o que provocou um afastamento geral na família mais nuclear, pelo menos.
Na perspectiva deles, não tem impacto negativo a título relacional porque são conscientes da necessidade de o fazerem, porém existe um impacto negativo no bem-estar deles. Novamente, há uma sensação de aprisionamento, de solidão ou um quase abandono… Que, obviamente, os faz questionar e pensar.
Se afectou negativamente os relacionamentos afectivos, é também correcto dizer que tanto os veteranos com PSPT como as suas famílias são vítimas “invisíveis” da pandemia.
A PTSD é a ferida invisível da guerra destes homens, que também afecta as suas famílias, que é o que chamamos de Perturbação de Stress Pós-Traumático Secundário. Aquando do seu regresso do Ultramar, estes homens foram abandonados e esquecidos, durante muitos anos. Não houve apoios ou suporte para eles por parte de ninguém. O mesmo sucedeu com as suas esposas e filhos, que sofreram com estes transtornos escondidos dentro das quatro paredes das suas casas. E, mais uma vez, o apoio foi pouco a nulo. Foram estigmatizados como “assassinos” e ainda hoje se ouve jovens a fazê-lo, com muito pouco conhecimento da história de Portugal e do que verdadeiramente eles passaram em Angola, Moçambique e Guiné.
Agora, com a pandemia eu questiono: o que mudou? A saúde mental destas famílias de ex-combatentes tem sido constantemente excluída. A meu ver, no fundo, com covid ou sem covid, sempre foram vítimas invisíveis.
Pode falar de algum caso em concreto?
Um dos sócios da APVG teve cerca de oito meses hospitalizado em 2020, julgo ter sido um dos primeiros casos covid em Braga. Felizmente, a nível emocional e mental não foi afectado e recuperou. Por outro lado, temos outro senhor que ficou infectado com a covid e agora não tem capacidade de reconhecer as pessoas na rua. Ainda não sei ao certo se por consequência do vírus ou por algum bloqueio emocional que o mesmo lhe possa ter causado.
Há muitos casos, varia sempre de pessoa para pessoa. Tive ex-combatentes que desistiram do acompanhamento e da terapia por puro medo à covid e estiveram mais de um ano sem dar continuidade. Por outro lado, um ex-combatente com graves questões de ansiedade, cuja companheira sofria de uma doença cancerígena, pediu o nosso apoio através das consultas online, via Skype.
As consultas online foram frequentes?
Tivemos algumas chamadas de ex-combatentes em crise, cujas esposas pediam por consultas (psicologia e psiquiatria) com urgência, porque já não sabiam como apoia-los. Foi um caso de um veterano de guerra que não parava de chorar porque as imagens da guerra não lhe saíam da cabeça, tolerância à frustração mínima, sintomatologia depressiva intensa e uma recusa total de falar ou mesmo de expressar o que pensava.
Também tive um ex-combatente a contar-me que acordava cedo de manhã e entrava para o autocarro e fazia todo o percurso, porque era a única forma que tinha para conversar com alguém: os outros passageiros.
Augusto Freitas dizia na entrevista que as restrições condicionavam o apoio psicológico. A situação já regressou à normalidade?
Gradualmente, tem voltado à normalidade. Na altura, até nós, funcionários, tínhamos algum receio. A desconfiança era muita, os cuidados muitos e as regras impostas eram seguidas à regra. Penso que a prioridade da APVG era proteger os seus sócios e incentivá-los a manterem-se em casa. Claro que, para tal, tivemos que condicionar o apoio psicológico e psiquiátrico, mas era a melhor forma segura para eles e nós, técnicos.
O nosso apoio era realizado à distância, via videochamada, mas, por vezes, chegavam-nos pedidos de apoio presencial devidamente justificados. Embora este modo tenha sido sempre o preferencial, por parte dos sócios.
Presumo que consultas de psicologia online não sejam fáceis…
A forma online causava bastante confusão e, muitas das vezes, só era conseguida com o apoio dos filhos dos veteranos, para além da comunicação ser dificultada pelas falhas de internet ou do delay entre os diálogos.
Pode dizer-se que uma das lições que se podem já tirar deste período pandémico é que é necessário fazer um estudo/investigação sobre o seu impacto nos doentes com PSPT,
independentemente de serem ou não veteranos de guerra?
Acho que seria essencial até para, numa próxima situação pandémica, as questões de saúde mental não serem abandonadas e poderem ser levadas em consideração.
Perceber em que grau foi a evolução ou o agravamento da PTSD e de que forma as pessoas, deixadas à sua sorte, conseguiram gerir essas questões. Também seria interessante, dado que não tenho conhecimento, acerca das taxas de suicídio de quem carrega esta perturbação.
E a grande questão que fica é o que vem depois. Quando o “perigo” da covid acabar, de que forma estas pessoas conseguirão voltar ou gerir a dita “normalidade” pré-covid?
Fernando Gualtieri (CP 7889 A)