Em silêncio, bombeiros de Norte a Sul de Portugal vêem pelas televisões os seus camaradas ucranianos a socorrer os compatriotas num cenário de guerra e pavor. Apagam fogos em habitações, procuram sobreviventes entre os escombros de edifícios de apartamentos, provavelmente minados, recolhem cadáveres das vítimas de massacres, resgatam civis feridos, arriscando-se, eles também, a serem abatidos por rajadas de metralhadora ou surpreendidos pela explosão de um míssil. E em que pensam os bombeiros de Vila Verde, Amares ou Terras de Bouro que assistem a estas reportagens? Fomos tentar saber.
A primeira coisa que se nota é que é em silêncio que os bombeiros nacionais se perguntam: seria eu capaz de fazer o que eles fazem?; teria resistência para, dia após dia, a arriscar a vida a socorrer outros numa guerra ?; serei suficientemente corajoso?
Os comandantes dos ‘Voluntários’ do Vale do Homem –Vila Verde, Amares e Terras de Bouro- já ‘ouviram’ estes silêncios. Nas cantinas dos quarteis, estas as imagens das tv’s são vistas em recolhimento.
Em Amares, Domingos Ferreira confessa que «não é fácil explicar o que se sente quando vemos essas imagens». «Cada um de nós sente-as de forma distinta», confessa o comandante dos Bombeiros.
«Os meus homens calam-se. Olham para a televisão cada um com o seu pensamento. Pouco dizem», acrescenta Luís Morais, comandante dos bombeiros vilverdenses.
José Amaro guarda para si as emoções que as reportagens na Ucrânia lhe suscitam. Contudo, diz que são muitas as perguntas que percorrem o intimo de todos os operacionais dos Bombeiros Voluntários de Terras de Bouro.
“Quando vêem as imagens, os meus homens provavelmente questionam-se: como seria se aquela guerra fosse cá? Seria eu capaz de fazer o que eles fazem? Teria a mesma coragem?», conta o seu comandante.
Por isso, não surpreende que estes comandantes prefiram não pensar num Portugal envolvido numa III Guerra Mundial…
SOLDADOS DA PAZ NA GUERRA
Já perante as mesmas imagens, os ‘civis’ vêem naqueles bombeiros ucranianos ‘heróis’, quase ‘super-homens’.
Luís Morais costuma dizer que os bombeiros «não são heróis nem têm superpoderes», mas quando vê o empenho e a determinação dos colegas ucranianos, Luís Morais confessa que «quase me convenço que afinal têm…».
«Sem “superpoderes” entre aspas, aqueles homens não aguentavam o que estão a passar», admite, mas lembra que o lema dos Bombeiros é “Vida Por Vida”. «Esta é a missão que todos nós, cá e lá, nos comprometemos a cumprir».
Domingos Ferreira concorda com o seu colega vilaverdense. «Não existem super-homens nos bombeiros. Se alguém lhe disse isso, não sabe do que fala», atira.
«O que vemos são bombeiros, um bombeiro que está na linha da frente, cumprindo a sua missão», sublinha. E também ele recorda que o seu lema é ‘Vida Por Vida’, estejam na frente de uma guerra ou não.
O mesmo diz o comandante dos ‘Voluntários’ de Terras de Bouro, que também não acredita em super-homens, mas que diz que estes homens «estão acima de qualquer super-homem».
Os últimos números disponíveis indicavam que no final de Março já tinham morrido cerca de 200 bombeiros.
O caso do bombeiro ucraniano Yohan, entrevistado por uma televisão britânica quando procurava sobreviventes entre os escombros de um bloco de apartamentos, 12 horas depois de ter visto um outro bombardeamento a destruir a sua própria casa, é apontado como um exemplo de resiliência, de capacidade de reagir à adversidade. Ou o caso da socorrista Lyuba que continuou a socorrer os feridos de uma explosão três dias depois de ter visto um irmão e um sobrinho morrer atingidos por rockets.
São só dois exemplos entre muitos. Mas a pergunta que surge inevitavelmente é só uma: como aguentam?
«Estamos formatados para prestar socorro, para minimizar o sofrimento humano», explica Luís Morais. «Esse é o espirito de Bombeiro. O Bombeiro é assim. Sai sem saber para o quê e, por vezes, quando chega ao local encontra um familiar ou a sua casa. Temos que estar preparados e não esquecer o nosso lema», diz Domingos Ferreira.
Em Terras de Bouro, José Amaro esconde a emoção. «Não podem desistir. Têm de continuar a socorrer e a salvar vidas, sem perder a coragem e uma determinação espectacular, mesmo que 12 horas antes tenham perdido tudo».
NO FIO DA NAVALHA
O comandante dos ‘Voluntários’ bourenses conheceu casos semelhantes em reportagens da CNN norte-americana. Uma delas, por exemplo, reportava os bombeiros a combater um incêndio numa habitação ao mesmo tempo que estão a ser fortemente bombardeados.
«O que eles fazem naquele medonho cenário de guerra é muito difícil, heróico», comenta.
Há, aponta por sua vez Domingos Ferreira, uma diferença substancial e «determinante» entre o trabalho feito pelos operacionais «de cá» e aquele que fazem agora os ucranianos «lá».
«Uma coisa é falar do socorro como o que fazemos, outra é falar de socorro em cenário de conflito e de guerra», refere
Com formação prestada por unidades brasileiras e israelitas especializadas na intervenção em meio urbano, Luís Morais tem conhecimentos teóricos e práticos sobre o socorro em zonas de conflito.
«Os bombeiros ucranianos saem dos quarteis sem armas. As únicas armas que levam consigo é o seu esforço e dedicação, a água e o espumífero para apagar fogos, as suas próprias ferramentas. Mesmo assim arriscam-se a ser vitimas da guerra e de um ataque traidor», explica sem floridos ou romantismos heróicos. “Esta é a diferença entre as acções que se fazem cá e as que os nossos colegas ucranianos são obrigados pela guerra a fazer agora».
«E esta distinção – sublinha – não é coisa pouca. Nada garante que quando saem para apagar os incêndios ou socorrer os feridos provocados pelos bombardeamentos não acabem eles próprios a ser vítimas dos mesmos bombardeamentos».
O único episódio semelhante que o Mundo tem na sua memória mais recente– diz Luís Morais – são os ataques do 11 de Setembro de 2001, que provocaram a morte a dezenas de bombeiros que também tentavam salvar as pessoas que se encontravam presas no interior das Torres Gémeas em chamas, em Nova Iorque.
TRAUMAS
E reforça: «nós, bombeiros, estamos formatados para entrar em acção com todas as condições de segurança asseguradas. Lá, isso não acontece».
Domingos Ferreira não dúvida: «esta situação vai provocar inevitáveis traumas de guerra».
José Amaro concorda com o comandante amarense. Acredita – «só posso acreditar» – que na retaguarda destes operacionais, nos quarteis, «há uma força muito grande e humana que apoie estes homens para que continuem a funcionar naquele cenário de guerra, uma e outra vez, há mais de dois meses. Sem desistir».
Luís Morais também não dúvida que os seus camaradas ucranianos «estão no limite das suas forças, nos limites psicológicos»
«Só podem estar a chegar ao fim-de-linha. E não podem “recuar”, ser substituídos por outros como cá fazemos sempre que uma equipa esteva sujeita a situação de muito stress», afirma.
Na Ucrânia não há “recuo”. «Saem de uma e entram noutra situação, mais grave ainda que anterior», expõe.
Para ele, os bombeiros ucranianos estão já a actuar «quase mecanicamente» e «não com as condições mentais em que deveriam estar».
Os três comandantes não têm a mínima reserva em garantir que as imagens que chegam da Ucrânia através dos jornalistas mostram bombeiros a ser levados «ao extremo da sua resiliência».
Só mais tarde, na «ressaca» da guerra, só quando tiverem concluído a sua missão, é que «as emoções voltam», e que surge a pergunta: «porque fomos nós a sobreviver»? O acompanhamento psicológico «é obrigatório», não só para os que andaram no terreno, mas também para os familiares.
Morais não gosta da expressão, mas é a ela que recorre para descrever e resumir a situação daqueles homens: «estão no fio da navalha».
José AmaroJosé Amaro e Domingos Ferreira garantem que o trauma provocado pela exposição ao perigo, ao sofrimento e ao horror «vai ficar para todo a vida».
Curiosamente, o comandante dos ‘voluntários’ de Terras de Bouro quando vê as imagens não consegue abstrair-se das questões operacionais.
«Já é difícil imaginar a coragem dos bombeiros, mas não consigo imaginar a dificuldade que devem ter aquelas corporações de se de articular. Por exemplo, em Terra de Bouro sabemos que temos de levar um doente para o Hospital de Braga. Mas lá como será com os hospitais a serem bombardeados diariamente e destruídos», questiona.
E como fazem com os combustíveis? Aonde o tem guardado? E a manutenção das viaturas? Como fazem para arranjar as peças de substituição? Para este bombeiro, tudo isto o deixa «surpreendido».
Domingos Ferreira e José Amaro subscrevem as palavras de Luís Morais em nome de todos os bombeiros: «Da nossa parte, uma continência muito séria, muito sentida e de muito respeito para todos os bombeiros da Ucrânia».
Fernando Gualtieri (CP 7889 a)
Reportagem publicada originalmente nas edições impressas dos jornais O Vilaverdense e O Amarense & Caderno de Terras de Bouro