O primeiro-ministro holandês pediu esta segunda-feira desculpa em nome do Estado pelo papel dos Países Baixos na troca de escravos, reconhecendo a escravatura como “um crime contra a humanidade” cujas consequências permanecem até aos dias de hoje.
“Hoje [segunda-feira] peço desculpa”, declarou Mark Rutte num discurso no Arquivo Nacional. “Durante séculos, o Estado holandês e os seus representantes permitiram e estimularam a escravatura, lucrando com a mesma”.
Considerando que o passado “não pode ser apagado, apenas enfrentado”, o primeiro-ministro reconheceu que durante séculos “as pessoas foram mercantilizadas, exploradas e trocadas em nome do Governo holandês”, o que “causou imenso sofrimento e continua a afectar a vida das pessoas hoje em dia”.
Para o chefe de Governo dos Países Baixos, “é verdade que ninguém ainda vivo carrega culpa pessoal pela escravidão”, mas ainda assim “o Estado holandês assume a responsabilidade pelo imenso sofrimento causado a todos os que foram escravizados e aos seus descendentes”.
Rutte anunciou ainda que, a partir de Julho de 2023, os Países Baixos vão concretizar um ano de reflexão sobre a escravatura para “ponderar sobre essa dolorosa história”.
A escravatura foi formalmente abolida em todos os territórios ultramarinos holandeses a 1 de Julho de 1863, tornando os Países Baixos um dos últimos países a pôr fim a esta prática. No Suriname o processo demorou mais dez anos, devido a um período obrigatório de transição.
O pedido de desculpas acontece numa altura em que os Países Baixos se têm esforçado por emendar o seu passado colonial, tendo, por exemplo, devolvido arte roubada às colónias e intensificado as campanhas anti-racismo.
Há, no entanto, quem tenha criticado o discurso de Mark Rutte, defendendo que o pedido de desculpas devia vir do rei Willem-Alexander quando este se deslocasse à antiga colónia do Suriname a 1 de Julho de 2023, data em que se assinala o 160.º aniversário da abolição da escravatura nos Países Baixos.
Rutte referiu-se a este desacordo na sua intervenção desta segunda-feira, observando que “não há um momento que seja bom para todos, não há palavras certas para todos, não há o lugar certo para todos”.
Já Roy Kaikusi Groenberg, da fundação afro-surinamesa Honra e Recuperação, notou que “são precisos dois para dançar o tango – os pedidos de desculpas têm de ser recebidos”.
Para este responsável, é errado que os activistas descendentes de escravos lutem há vários anos para mudar a discussão nacional sobre a escravatura e não tenham sido suficientemente consultados sobre o tema.
“A forma como o Governo está a lidar com isto parece um impulso neocolonial”, declarou Groenberg, citado pela agência Reuters.
O primeiro-ministro Mark Rutte garantiu entretanto que o Governo vai enviar representantes ao Suriname, assim como às ilhas caribenhas que ainda fazem parte do reino holandês, possuindo graus de autonomia distintos: Curaçau, Sint Maarten, Aruba, Bonaire, Saba e Sint Eustatius.
A primeira-ministra de Sint Maarten, Silveria Jacobs, disse na semana passada que não vai aceitar um pedido de desculpas sem que haja uma discussão prévia entre os dois países.
MAIS DE MEIO MILHÃO DE ESCRAVOS
Os Países Baixos criaram em 2020 um painel consultivo para a eliminação do racismo. No ano seguinte, esta entidade concluiu que a participação holandesa na escravatura foi equivalente a crimes contra a humanidade, recomendando que o Governo emitisse um pedido de desculpas e atribuísse compensações.
O pedido de desculpas já foi feito, mas as compensações monetárias foram já descartadas pelo Governo numa conferência de imprensa a semana passada. No entanto, Amsterdão decidiu criar um fundo educacional no valor de 200 milhões de euros para esta causa.
No seu ponto alto, nos anos 1770, a escravidão terá contribuído para mais de dez por cento do Produto Interno Bruto (PIB) dos Países Baixos, segundo cálculos de historiadores.
Muitos historiadores estimam que, nos séculos XVI e XVII, os comerciantes holandeses tenham enviado para as colónias na América do Sul, África do Sul e Indonésia mais de meio milhão de escravos africanos.
Entre a população dos Países Baixos existe um sentimento geral de orgulho na história naval e comercial do país, mas nas escolas as crianças pouco aprendem sobre o papel desempenhado pela Companhia Holandesa das Índias Ocidentais e das Índias Orientais no comércio de escravos.
Apesar dos esforços no combate ao racismo neste país europeu, os cidadãos de ascendência turca e marroquina relatam elevadas taxas de discriminação no dia-a-dia. Estudos recentes revelaram que estas pessoas enfrentam desvantagens tanto no mercado de trabalho como no mercado imobiliário.
com RTP