Ao contrário do que se pensa, as rabanadas de muitas mesas da consoada e de fim-de-ano não são um exclusivo português. Na verdade, em cerca de uma centena de países de todos os continentes esta iguaria doce é apreciada, e não só pela altura do Natal.
Comecemos pelo início. A rabanada aparece documentada pela primeira vez no século XV pelo poeta espanhol Juan del Encina, que, segundo diversos autores, compartilha a paternidade do teatro Ibérico com Gil Vicente.
A rabanada deste humanista, músico e cantor incluía pão, mel e muitos ovos, e ao que parece indicada para a recuperação pós-parto.
As primeiras receitas remontam a um livro de cozinha (1607) de Domingo Hernandez de Maceras, outro espanhol e à obra e ‘Arte de cozina, pastelería, vizcochería y conservería’ (1611), do chef e escritor, também ele espanhol, Francisco Martínes Motiño. Não admira assim, que esta apetência pela rabanada a faça, no início do século XX, muito comum nas tabernas de Madrid, sendo acompanhado com jarros de vinho, e em qualquer altura do ano.
A receita ‘internacional’ da rabanada varia de país para país. Contudo, a base é idêntica: pão de trigo, (pão de forma, baguete ou outro), em fatias que, depois de molhadas em leite, vinho (no Minho usa-se vinho verde tinto ou branco), calda de açúcar ou mel, são passadas por ovos e fritas ou assadas.
PELO MUNDO
Posto isto, aqui vão alguns exemplos de países onde este doce é apreciado. Além de Portugal, a rabanada faz parte da ementa de ceias do Brasil, sobretudo no Natal.
Como cá, o pão seco é polvilhado com açúcar de canela ou regadas com calda de açúcar, xarope ou mel
Em outros países são típicas nas celebrações espanholas da Quaresma e Semana Santa, assim como em várias partes do México.
Na França, a rabanada prepara-se com características similares o ‘pain perdu’ (‘pão perdido), não sendo frito em azeite, mas sim numa chapa.
No Reino Unido e em países de língua inglesa, bem como no Japão, é conhecida como ‘Franch Toast’
Na Guatemala chama-se ‘tostadas a la francesa’, e na fronteira norte do México ‘pan francés’. Em várias partes do México, o doce é típico nas celebrações espanholas da Quaresma e Semana Santa.
Na Argentina e Uruguai existe um modo simples de elaborar rabanadas (que podem ser chamadas nestes países ‘torrejas’: umedece-se com leite de migas de pão comum, formando um bolo, que é passado pela gema de ovo batido, depois frito e por fim pode ser polvilhado com açúcar.
Na Venezuela as rabanadas já foram conhecidas como ‘tacones’, porém o termo caiu em desuso.
No Brasil elas são cozidas especialmente para as festividades natalícias, em que, logo depois da fritura, a rabanada é molhada em sumo de fruta ou leite condensado.
Rabanadas encontram-se ainda pelo Norte de África, Médio Oriente, Ásia, nomeadamente na Índia, Tailândia, Camboja e Vietname.
RABANADA À POVEIRA
Outrora, a palavra ‘rabanada’ era apenas utilizada ao norte do rio Mondego e ao mesmo doce atribuía-se, a partir da margem sul deste rio, o nome de fatia-dourada, ou fatia-de-parida, o que parece dar razão a Juan del Encina.
Das receitas de rabanadas, uma merece destaque: a Rabanada à Poveira. A Câmara Municipal da Póvoa da Varzim conta tudo sobre esta especialidade que anualmente é pretexto para um festival e concorrido concurso.
“A rabanada é um doce de referência na comunidade piscatória poveira. Elaborada com base em ingredientes acessíveis, enquadrava-se bem numa população cujas raízes não se sustentavam na abundância e que incorporavam na gastronomia a singeleza da sua vida quotidiana.
A diferença estava na criatividade de quem confeccionava, por isso a rabanada está longe de ser um produto homogéneo. De casa para casa, ou mesmo em cada família, encontravam-se várias soluções, segundo as posses ou os gostos, e reforçando-se assim os sabores com diferentes opções (vinho branco, vinho tinto, vinho do porto, leite, água, etc.). No entanto, o que associa a Póvoa à rabanada não é propriamente esta tradição familiar.
A conhecida ‘Rabanada Poveira’ é um produto mais recente, com forte feição comercial e fruto de uma adaptação das tradições locais. O responsável foi Leonardo da Mata.
No início da década de 50, o autor teve a ideia de apresentar a ‘Rabanada’ na ementa do seu restaurante, procurando assim encontrar uma solução para as sobras de pão, o chamado bijou ou molete, mas designado pelos poveiros de ‘trigo’. Recorde-se que tradicionalmente as rabanadas eram feitas de pão cacete.
Definido o propósito, Leonardo da Mata pôs mãos à obra no sentido de conseguir um resultado convincente. Um percurso feito de tentativas até obter o resultado pretendido. A questão fundamental sempre foi a qualidade do pão facto que, com o passar dos tempos e a moda do ‘pão quente’, veio dificultar a tarefa.
Mantendo a tradição da comunidade piscatória, o autor recorreu a ingredientes básicos e o resultado final reflectiu a mestria do cozinheiro.
O sucesso das ‘Rabanadas Poveiras’ ou das ‘Rabanadas do Leonardo’ levava a grande procura deste produto quer na Póvoa quer na região, sendo frequente o envio para o Brasil.
Era ‘obrigatório’ para quem nos visitava levar para casa uns exemplares do doce de referência da Póvoa. Contou José da Mata que em certas situações (exemplo de jogos de futebol com equipas que traziam muitos adeptos) era necessário haver polícia para disciplinar a fila que se formava para comprar as rabanadas.
Este doce sobreviveu à morte do seu criador e é hoje possível encontrá-lo na ementa de muitos restaurantes da cidade, mas, como acontece nestas coisas da gastronomia, cada um tem um toque pessoal que o individualiza.
RECEITA
Pão ‘trigo’ (molete ou bijou) – de preferência seco e de boa qualidade, com massa bem fermentada; Leite em quantidade suficiente para que os pães fiquem ‘a nadar’; ovos, em média 1 ovo por pão; açúcar; canela em pó e pau de canela; sal (uma pitada).
CONFECÇÃO
Aparar o pão nas pontas e parti-lo ao meio de forma a ter uma grossura homogénea. Colocar o leite a aquecer ao qual se acrescenta uma pitada de sal, um pau de canela, canela em pó e açúcar a gosto. Demolhar os pães nesse leite morno para que fiquem bem cobertos e bem empapados. Espremer bem os pães e colocá-los numa travessa a repousar. Em seguida demolhá-los no ovo deixando absorver bem e fritar em óleo quente e abundante para que as rabanadas fiquem ‘a nadar’. Retirar e polvilhar com açúcar misturado com canela.”
Fernando Gualtieri (CP 7889 A)