Se o mar invadir as zonas costeiras, as cheias começarem a ser recorrentes, as tempestades se formarem a uma velocidade nunca antes vista, as secas impedirem a agricultura, o aquecimento global provocar a escassez de água, as ondas de calor passarem a ser a normalidade e aparecerem novas doenças e desaparecerem animais e plantas. O que poderá acontecer? Este foi tema da conversa de Francisco Ferreira, presidente da Associação Zero, e a SIC.
Por ano morrem em Portugal cerca de 200 pessoas devido às alterações climáticas e as mais vulneráveis são as mais afectadas. Em todo mundo calcula-se que morram 10.000 todos os anos, a maioria nos países do sul do globo.
Segundo um estudo da conceituada revista científica Lancet, o cumprimento do Acordo de Paris poderia salvar milhões de vidas até 2040 em pelo menos nove países, que representam metade da população mundial e 70% das emissões de gases com efeito de estufa: Brasil, China, Alemanha, Índia, Indonésia, Nigéria, África do Sul, Reino Unido e Estados Unidos.
Mas para ser possível salvar milhões de vidas é preciso políticas consistentes com os objectivos do Acordo de Paris e impedir que as temperaturas globais subam mais de 2ºC, e de preferência 1,5ºC, defende o estudo.
Portugal foi a primeira nação do mundo a anunciar, em 2016, uma meta para atingir a neutralidade carbónica. O compromisso é conseguir alcançar um balanço entre a emissão de gases com efeito de estufa e o carbono sequestrado por sumidouros em 2050.
“É um caminho longo até à neutralidade climática”, constata Francisco Ferreira, presidente da Associação Zero, mas estão a ser feitos “fortíssimos investimentos no sentido de reduzir a nossa pegada, por exemplo no que diz respeito às energias renováveis”, acrescenta, citado pela SICNotícias.
Francisco Ferreira coloca a hipótese de a data para atingir a neutralidade carbónica ser antecipada “dada a emergência climática que o mundo vive”. Portugal ainda é “um país muito dependente dos combustíveis fósseis”, mas o presidente da Zero acredita que “quer à escala das políticas, quer à escala dos indivíduos” ainda há “uma margem muito grande para percorrer” e que entende que deve ser acelerada.
Desde 1990 que as emissões de gases com efeito de estufa, causadoras do aquecimento global e consequentes alterações climáticas, começaram a aumentar em Portugal. A partir do ano de 2005 verificou-se uma redução e Francisco Ferreira aponta duas razões: “alguns anos depois por causa da crise económica e por lado porque começámos a ter várias fontes renováveis”.
EFEITO HABITAÇÃO
No entanto quando a crise atenuou, em 2014-2015, as emissões voltaram a aumentar e só agora se voltou a registar uma diminuição: “Por exemplo, com a retirada das centrais a carvão é que nós estamos a ter uma redução significativa, mas [há] muitas áreas em que estamos em falta”, diz Francisco Ferreira.
Uma das áreas mais críticas é o edificado: “nós continuamos a não ter conforto térmico em nossas casas”.
Portugal é o país da União Europeia (UE) com os valores mais baixos de poupança energética nos edifícios residenciais, de acordo com um relatório do grupo de investigação da Comissão Europeia.
Francisco Ferreira defende que são necessárias apostas “onde não seja à custa do ar condicionado, mas sim à custa de melhor isolamento” que se consiga conforto térmico, para que no futuro seja possível reduzir as emissões.
EFEITO METANO
Mas existem outros sectores, como a agricultura, em que há atividades que, apesar de produzirem alimentos, estão associadas a emissões significativas, como a agro-pecuária.
“O metano é um gás com efeito de estufa e a produção de gado bovino, principalmente de forma intensiva, acaba por ter um papel ainda importante e que se relaciona com a nossa própria selecção do que é a nossa alimentação, que deveria ter uma componente mais vegetariana e reduzirmos nomeadamente o consumo de carne”, explica Francisco Ferreira.
O objectivo para Portugal até 2030 é uma redução de 45 a 55% das emissões de gases com efeito de estufa, mas para a Zero, e para o país estar em linha com o Acordo de Paris, deveria ser atingida uma redução de 65% das emissões.
“Nós achamos que isso é possível se realmente desempenharmos as políticas na área da mobilidade e com o investimento nas [energias] renováveis”, acredita Francisco Ferreira.
EFEITO CARVÃO
Portugal tem vindo a investir na energia solar e até há pouco tempo “apenas cerca de 2-3% [da electricidade] era de origem solar”, o que para o professor universitário significa que há “uma enorme margem de aumento, bem como também noutras áreas das renováveis”.
“Esta questão da promoção da electricidade é muito importante porque representa um quarto das emissões de gases com efeito de estufa”, explica.
O fecho das centrais a carvão, onde as “emissões são muito significativas”, “estava inicialmente previsto para 2030” e foi antecipada para 2021: “Estamos a fazer esta transição, digamos assim, neste sector e estamos a melhorar, mas é um caminho ainda longo”.
No entanto, enquanto a “produção de electricidade tem vindo a reduzir”, existe “um sector que tem vindo a aumentar muito o seu peso, apesar de começar a haver esforços grandes de redução na área da mobilidade”: “os transportes neste momento já devem estar próximos dos 30% [das emissões]”.
Francisco Ferreira defende que enquanto houver “muito investimento naquilo que é o caminho errado em relação ao combate às alterações climáticas” ainda não se está “fazer o suficiente”.
“A tendência é continuar a agravar-se e quando nós tomarmos as medidas que podíamos ter antecipado vai demorar muito mais tempo a recuperar.”
EFEITOS DRAMÁTICOS EM PORTUGAL
O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas prevê “efeitos efectivamente dramáticos”. E o Mediterrâneo, incluindo Portugal, é apontado como uma das regiões mais vulneráveis do mundo às alterações climáticas.
Não é uma questão de estarmos aqui a reagir ao medo, mas é aquilo que a ciência nos diz”, reflecte Francisco Ferreira.
Neste momento a “folga já é pequena”.
“Nós praticamente já estamos num aumento de 1,1ºC [em relação à era pré-industrial]”. E segundo o relatório do IPCC o “desejável” é que o aquecimento mundial até 2100 seja de 1,5 ºC.
Se o aumento da temperatura for superior a este valor em relação à era pré-industrial, explica Francisco Ferreira, haverá “um aumento do nível do mar, que vai pôr em causa as populações costeiras, um maior número de eventos meteorológicos de secas e cheias, doenças que antes não [existiam]”, poderão desaparecer “várias espécies florestais e agrícolas em Portugal porque não conseguem viver nas novas condições climatéricas” e “obviamente uma falta de água maior, que se prevê com o aquecimento global que vai afectar a Península Ibérica”.
As consequências do aumento da temperatura vão desde a saúde até à economia e se não se trabalhar a partir de agora na “mitigação, redução das emissões, e ao mesmo tempo na adaptação” os “custos serão muito grandes” no futuro.
Para Francisco Ferreira, tudo o que for feito preventivamente vai “sair mais barato a médio-longo prazo”, porque não será necessário lidar com os impactos das alterações climáticas.
“Reduzir as emissões tem custos de investimento, [mas] acaba por ser um excelente investimento, se forem medidas estruturantes”, sutenta.
No entanto, defende que deve ser feito “com um enquadramento em termos de sustentabilidade”, ou seja não ser pensado apenas como uma questão de clima, há que garantir “o bem-estar e qualidade de vida, não é um regresso à idade da pedra”. Para isso é fundamental “reduzir as emissões protegendo [ao mesmo tempo] as populações mais vulneráveis”.
E para que aconteça uma transição justa terá de haver planeamento. Francisco Ferreira dá o exemplo do fecho da refinaria de Matosinhos, que “não aconteceu bem porque esse planeamento não foi feito”: “É não encerrarmos a refinaria de um momento para o outro, é planearmos o inevitável encerramento da refinaria”.
PAPEL DAS CÂMARAS
O processo passa por trabalhar na mitigação, ou seja, na redução das emissões, e ao mesmo tempo na adaptação às alterações climáticas.
Na mitigação, “o mais importante será olhar para os sectores que são mais críticos em termos de emissões”, como a produção de energia e os transportes.
Na adaptação, destaca o papel dos municípios, onde vários “estão a identificar à sua escala como é que vão lidar com cheias, falta de água, subida do nível do mar, tempestades”.
“O papel das cidades, das autarquias é absolutamente crucial. Porque nós devemos ter planos para a energia e clima, devemos fazer disso uma prioridade em todos os municípios para que se tornem mais resilientes, salvaguardando as populações a médio e longo prazo”, refere.
Porém, existem outros campos onde a adaptação às alterações climáticas está a acontecer, como em alguns sectores da agricultura, diz Francisco Ferreira, como a vinicultura, que já está a planear o que é que pode e deve fazer para lidar com o aumento da temperatura; ou a produção de cortiça, onde o sobreiro “estará em risco também com as alterações climáticas”.
O presidente da ZERO diz que existe “todo um conjunto de ideias para a adaptação que têm de passar do objectivo para a acção”.
“Nós precisamos de fazer muito mais e mais depressa, não vai ser fácil, vai ter sem dúvida uma tradução na economia, que vai chegar ao consumidor, mas é preciso acelerar realmente estas acções.”
Francisco Ferreira admite que nos últimos anos a redução de emissões deveria ter sido mais acentuada “do que tem verdadeiramente acontecido”, reforçando que quanto mais depressa se actuar “mais barato sai e melhores garantias” existem “de que efectivamente a humanidade fica mais salvaguardada, principalmente os mais vulneráveis”.
Por isso considera “muito importante” que haja cada vez mais pessoas sensibilizadas e que entendem a “urgência destas medidas”, mas o essencial é que os governos tomem medidas que “devem ser concertadas à escala europeia e internacional”.
Redacção com SICNotícias