A crueldade da Covid-19 vê-se nos quase três milhões de mortos que já fez, nas dezenas de milhares condenados a viver o resto da vida com sequelas, no número incalculável dos que têm a sua saúde mental afectada, nas centenas de milhões atirados para o desemprego e pobreza, nas economias nacionais fragilizadas e reféns dos mais que evidentes interesses das farmacêuticas e das Nações mais ricas. Mas a mesma crueldade encontra-se também nas famílias destroçadas pela morte e pela distância.
Após um ano marcado pelo relacionamentos à distância, aqui se contam histórias de ausências, crónicas de vidas suspensas, à espera.
Fernando Gualtieri
Sinistras armadilhas da pandemia
Crónica da Família Najera Pimenta
Vila Verde – Villahermosa (México)
Ao saber da morte do pai, Yesenia Najera viu confirmada a tragédia que um pesadelo anunciara pouco tempo antes. O pai desta mexicana, a viver em Vila Verde desde que casou, não resistiu, aos 62 anos, a um AVC, sucumbindo, conta ela, «à canseira de uma vida de camionista feita na estrada, sem folgas, e à aflição de ver a companheira gravemente doente em casa».
Abalada pelo dor e pela angústia, Yesenia – Jéssica, como a tratam por ser «mais fácil de decorar» – viu-se numa situação que nunca imaginaria, nem nos piores pesadelos: não podia ir ao funeral.
Com a pandemia de Covid-19 a alastrar-se vertiginosamente por todo o Mundo, e duas filhas bebés no colo, confrontou-se com as fronteiras fechadas, os voos proibidos e a ameaça de infecção à cata da mínima distracção, proibindo-a, sem apelo nem agravo, de se despedir do pai, Alejandro, sepultado em Villahermosa, capital do Estado mexicano de Tabasco, a quase 8.500 quilómetros da terra que a adoptou.
«Foram meses de muito sofrimento, de dor intensa, ansiedade e muitas lágrimas», recorda. «Custou-me muito não me poder despedir, de ir ao funeral. Além de meu pai era também o meu melhor amigo e meu cúmplice», diz, contendo a comoção que lhe baila nos olhos negros.
O marido, António Pimenta, 44 anos, vilaverdense, lembra-se desses «meses de grande sofrimento». «Chorava por qualquer motivo, profundamente triste por não ter podido despedir-se». Recusou mesmo ver imagens de funeral que a família se prontificou a fazer-lhe chegar pela redes sociais para a ajudar.
Se foi um pesadelo que abriu portas a este «período negro» na vida de Jéssica, de 41 anos, foi um sonho que a ajudou num processo de luto já por si doloroso, mas que a distância e o afastamento estavam a tornar ainda mais atormentado e espinhoso.
«Sonhei que algo ou alguém – talvez um anjo – me dizia que o meu pai estava em grande sofrimento e triste por eu estar a sofrer com a sua morte, que as minhas lágrimas e o meu desespero não o deixavam descansar na morte», conta. «Deixa o teu pai descansar o sono em eterno em paz, disse aquela voz».
Assim fez. O sonho, que nos países ibero-americanos tem um grande peso cultural, quase sempre associado ao oculto e a uma religiosidade que integra elementos da espiritualidade dos povos indígenas, permitiu a Jéssica um certo «distanciamento à dor».
António acrescenta que as filhas – Fátima, em homenagem a Nossa Senhora de Fátima, e Guadalupe, em honra da santa de maior veneração do povo mexicano – deram uma ajuda «muito importante» para ultrapassar aquele momento. «A atenção que as nossas filhas bebés precisavam, a alegria que dão às nossas vidas, ajudaram-na a ultrapassar o pesar por não poder estar presente na despedida», afirma. «De certa forma, interiorizou a perda, mentalizou-se que tinha que seguir em frente», acrescenta.
Logo que possa, Jéssica viajará para o México para, junto à campa de Alejandro, dar mais um passo nesse longo processo de luto. Mas a pandemia voltaria a fazer das suas na vida desta mulher, que no México foi consultora de uma empresa de construção.
Na estação das chuvas, em meados de Setembro de 2020, uma forte tempestade provocou grandes inundações, destruindo centenas de habitações no México. A casa de família foi uma das afectadas. «A água destruiu todas as minhas coisas, todas as minhas recordações de criança e de jovem», recorda com uma profunda tristeza.
Pela segunda vez, a pandemia impediu de ir ajudar a mãe a recuperar o que havia para recuperar. Pela segunda vez, Jéssica sentiu que a Covid-19 estava a impor-se na sua vida e, mais uma vez, a decretar as suas leis cruéis.
Agora, espera reencontrar a mãe em Vila Verde, no baptizado da filha Guadalupe –a Lupita –, já marcado para Junho. Ambas vivem para essa data. «Com ajuda de Deus», a pandemia não voltará a pregar mais uma «sinistra partida».
Não esconde alguma preocupação com a situação pandémica no México, que, recorde-se, chegou a estar no grupo dos mais afectados, a par com os Estados Unidos, Brasil e Reino Unido. Já a mãe, Teresa, uma jovem avó de 60 anos, não está tão preocupada.
«Os portugueses são muito mais disciplinados que nós, os mexicanos», assegura. «Se lhes pedirem para ter cuidado, os portugueses têm. Já aqui no México as recomendações não valem a pena. Fazem ao contrário e depois o Governo é obrigado a confinar todo o país», comenta.
Além do mais, sabe que a toda a nova família da filha tem «muito cuidado». «Só saem em caso de necessidade e com todas as cautelas», afiança. Em Julho estarão todos juntos para o tal abraço há tanto é desejado, «se Deus quiser».
«Quero a minha mãe e o meu marido de volta»
Crónica da Família Freitas Monsanto
Braga – Saint Germain (França) – Rio de Janeiro (Brasil)
A comoção toma conta da luso-brasileira Patrícia Monsanto quando fala dos familiares que deixou no Brasil. Indica-os um a um, nome e idade, uma estratégia para os sentir mais próximos, diferenciando-os de tantas outras pessoas anónimas que por todo o Mundo tardam em reencontrar os seus. E não contém as lágrimas quando recorda aqueles que perdeu para a Covid-19.
Entre os mais de 328 mil mortos de Covid-19 que o Brasil somava a 3 de Abril, dia em que é entrevistada, conta-se uma tia, Zedir, de 81 anos, falecida no início de Março passado, e vários amigos de infância do marido, Luís Freitas, de 58.
Recorda o tio Paulo César, de 77, agora em casa, em «estado muito grave», com 20 por cento do pulmão comprometido. «Teve muita sorte», diz. A mesma sorte que tiveram três amigos do casal, sobreviventes a semanas de internamento em «situação muito delicada».
No dia em que o Brasil chora a morte de quase 3.800 pessoas por infecção da SARS-CoV-2 em apenas 24 horas, Patrícia poderia enumerar «dezenas de outros casos», mas as palavras embargam-se a esta mulher de 56 anos, que quem a conhece considera «forte e determinada».
Desde que em Dezembro de 2018 chegou a Braga que não vê a mãe, Cândida, de 84 anos, nascida na Póvoa de Lanhoso, e que aos 14 anos partiu para o Rio de Janeiro. Desde essa data que não abraça Luciano, filho de um primeiro casamento, e o neto Luís, de 15 anos. Nem os irmãos Marco, Marcelo e Priscila, nem as sobrinhas Julliane, Mariane, Úrsula e Bruna.
O último encontro com o marido foi em Braga, no Verão de 2019. O filho Daniel, a nora Daniele e os netos Romeu e Samuel, de 7 e 9 anos, visitaram-na já em tempo de pandemia, no Verão do ano passado. Vivem em Saint Germain, França, e «cheios de vontade de ir a Portugal», o que poderá acontecer quando as viagens forem retomadas.
«Só me resta telefonar o tempo todo para o Brasil», diz Patrícia, que, apesar da companhia do enteado Bruno, sente que não tem condições para «continuar aqui sozinha». As saudades são muitas, sobretudo da mãe e do marido.
«Quando falo com a minha mãe ela repete vezes sem conta que «te amo muito, filha». Nunca me disse que me ama tantas vezes…É só amor!», conta, agora com um sorriso de todo o tamanho.
Dias depois, em conversa com o jornalista por telefone, Cândida, que recupera de uma delicada intervenção cirúrgica, confinada com a neta Julliane no bairro carioca da Tijuca, ri-se do comentário da filha.
«O afastamento desta pandemia aproxima as pessoas», diz. É o “neto” Bruno, que também não vê o pai, corrector imobiliário, há praticamente nove meses, que explica o paradoxo: «só quando estamos afastados sentimos falta de quem amamos».
O marido, justifica Patrícia, empresária da restauração, está «preso» no outro lado do Atlântico: «tem que gerir a imobiliária e as viagens para Portugal estão proibidas».
«O meu maior problema é estar longe de todo o mundo, de toda a minha gente. Deixei a família, deixei amigos, deixei tudo lá», desabafa. «É por isso é que estou tão chorosa, melancólica e muito angustiada».
Ao contrário do primeiro confinamento – que «serviu para descansar um pouco» depois de «meses de muito trabalho» para reerguer o café snack-bar que adquiriu – este foi «muito difícil» e «penoso».
«Tenho pouquíssimos amigos aqui, que não posso visitar por causa do risco de infecção. Tenho muito pavor da pandemia. Só me sinto segura dentro de casa», reconhece, preocupada com a possibilidade de um novo confinamento que lhe «mataria» o estabelecimento.
Foi convencida pelo filho Daniel, actualmente desempregado, a vir para Portugal em busca de tranquilidade, segurança e uma vida mais saudável». Não se arrepende. «É maravilhoso morar em Braga». «Não quero voltar para o pandemónio, para o inferno do Brasil. O meu maior desejo é que o Luís venda a imobiliária e venha morar para cá. Quero o meu marido comigo. Quero a minha mãe de volta. Quero a minha família de volta. Se pudesse trazia-os todos para cá», exclama.
Por agora quer poupar «o mais possível» para poder ir ao Brasil depois do Natal. As notícias que ouve deixam-na cada vez mais «atormentada». O país é considerado pelos cientistas brasileiros o epicentro da pandemia. Defendem mesmo que a comunidade internacional deveria declarar o território, a contas com diferentes estirpes, mutações do vírus e «ausência de um Governo à altura da situação», em estado de calamidade humanitária.
«É muito triste ver o que está a acontecer, ver tudo a perder-se», desabafa do Rio Cândida, que teme o «colapso total» do quase «moribundo» sistema de saúde brasileiro. «O Governo brasileiro está a lidar com a pandemia de uma forma muito ruim, sem qualquer consciência, sem respeito e consideração pelo povo», acrescenta Patrícia.
Concorda com aqueles que querem levar o Presidente Bolsonaro a tribunal. «Bolsonaro tem que ser intimado pela Justiça. Não presta. Está a matar o povo, sobretudo os mais pobres, aqueles que não têm assistência, não tem médico, não têm nada. É um Presidente criminoso, quero a minha família longe dele», atira.
«Acho que o meu homem já morreu»
Crónica da Família Ferreira
Lisboa- Liège (Bélgica) – Península Papagayo (Costa Rica)
Filinto espera que a entrevista à mãe, Augusta, a «espevite um pouco», coisa que a curadora, Creusa, agora só com dificuldade consegue. Acompanhada por Creusa, Augusta Ferreira, nascida em Terras de Bouro há 84 anos, recebe o jornalista, primeiro com alguma perplexidade, depois com uma satisfação indisfarçável. Ao longo da conversa, a curadora, uma brasileira de 38 anos, corrige algumas imprecisões de “Dona Gusta”.
Vive na casa de Filinto, o filho mais velho, em Lisboa, bem próximo da Igreja de São Roque. Logo que soube que o pai estava gravemente doente, decidiu levá-la para a capital, onde Augusta aterrou em Outubro de 2018 depois de viajar pela primeira vez de avião.
O filho, de 65 anos, aceitou abrir a porta de casa, mas com uma condição: não falar no pai, Lúcio, de 87 anos. «A maior parte do tempo a minha mãe pensa que ele já morreu. Ela está com Alzheimer, ainda ligeiro, mas evidente», explica. Na verdade, Lúcio, depois de passar pelos hospitais de Póvoa de Lanhoso e de Braga e pelo Instituto Português de Oncologia do Porto, agoniza numa unidade de cuidados continuados bracarense.
Curiosamente, é a idosa que toca no assunto.
«Acho que o meu homem morreu». É a primeira coisa que diz quando o jornalista a cumprimenta. «Já não o vejo há muito tempo. Acho que morreu», desabafa novamente. Creusa, com cuidado, corrige a idosa. Diz-lhe que o marido está no hospital em Braga.
«A mim ninguém diz nada…», atira Augusta, desagradada por ser contrariada. Ao longo da entrevista repete por várias vezes a mesma ideia: «o meu homem já morreu».
Como antes o filho fizera para a preparação da entrevista, Creusa conta que Augusta «caiu» muito desde o início da pandemia. Deixou de ir à pastelaria das imediações tomar «o seu abatanado com meia torrada», a «missinha» na Igreja de São Roque ou na Igreja da Encarnação foi substituída pelas eucaristias online, as idas ao supermercado e os curtos passeios pelo Largo Trindade Coelho interrompidos há mais de um ano.
«As restrições, e sobretudo a falta dos passeios diários, estão a fazer-lhe muito mal, não só em termos de mobilidade mas à mente», diz a brasileira com o sotaque de Minas Gerais.
A idosa interrompe o bordado («lavores», como lhe chama), «a única ocupação que ainda tem», e segue a conversa com atenção. É entre recordações de infância de «muita fome», das «brincadeiras» de adolescente, dos «namoricos» e da vida de doméstica, que então fala das filhas, Ana e Glória, um tema que o filho considera igualmente «muito delicado».
«Apesar de não o admitir, tem imensas saudades das filhas. Há quase ano e meio que não as vê», sussurra Creusa.
Ana e Glória, agora com 63 e 60 anos, deixaram Terra de Bouro aos 16 e 17 anos, uma para Alcobaça, outra para Lisboa, em busca de independência e de um futuro que a terra natal não prometia. A decisão não foi bem aceite pelos pais.
Foi no Natal de 2019 que mãe e filhos se reuniram pela última vez, um encontro entristecido pela ausência do pai Lúcio.
«Elas [as filhas] estão cada uma para cada lado, nas sua vidas. Nem tempo têm tempo de visitar esta velha», diz Augusta de forma algo rude. «Devem andar lá por Lisboa». Creusa sorri à confusão da patroa, mas não a corrige. «Mas temos saudades delas, não temos D. Gusta?», pergunta.
Augusta olha a empregada e atira: «se é para nos vir aborrecer, o melhor é nem porem aqui os pés». Creusa tenta explicar que «esta doença é muito perigosa» e o que «o melhor é cada um fique nas suas casas».
Augusta não ouve, ou faz que não ouve, e retoma o bordado.
Por telefone desde de Liège, na Bélgica, Ana confessa que a relação com a mãe se tornou «difícil» desde que abandonou Terras de Bouro. Não tem qualquer intenção de visitar a mãe. «Voltarei a Portugal para o funeral do meu pai, se for possível. Antes disso, não».
Responsável por um infantário para os filhos dos trabalhadores de uma multinacional, Ana reconhece, contudo, que por «várias vezes» chegou a procurar na Internet voos para Lisboa, mas «por este e aquele motivo» mudou de ideias. «Além do mais, a empresa levanta muitos obstáculos a viagens aos trabalhadores estrangeiros. Não querem que viajemos nesta situação de pandemia, o que compreendo», explica.
Já Glória, «governanta» de um hotel na Península Papagayo, na Costa Rica, ri-se do «mau feitio» da mãe e da irmã. «Só espero que os voos para a União Europeia reabram para viajar», assegura, ao telefone. Pressente que se não viajar «tão cedo quanto o possível» é «muito provável» que a mãe já não reconheça quando se reencontrarem. «Esta pandemia está a matar as famílias», remata.
Em Lisboa, a milhares de quilómetros das filhas, Dona Augusta Ferreira levanta-se e dirige-se para a janela aquecida por um sol da Primavera lisboeta. De olhar ausente, espreita através das cortinas a rua, ou, muito mais provável, as memórias que a entrevista avivou.
(Dez dias após a entrevista, a família informa que Lúcio Ferreira faleceu na madrugada de Sexta-Feira Santa na unidade de cuidados continuados onde se encontrava, e solicita que a foto da idosa seja retirada da edição online)
Fernando Gualtieri
(Reportagem publicada nas edições imprensas de Abril dos jornais O Vilaverdense e O Amarense & Caderno de Terras de Bouro)