É caso para dizer “ele há coisas!”: Não fosse Joaquim Martins ter vencido a timidez convencido pela desenvoltura do irmão, Armando, as únicas (ao que se saiba) fotografias não-oficiais da inauguração, em Junho de 1970, do Palácio de Justiça de Vila Verde não existiriam. E também toda a cerimónia, encenada ao estilo do Estado Novo, não ficaria registada em 15 minutos de filme a cores.
Armando Martins conta como tudo sucedeu nesse dia «muito quente» de Junho, por altura dos Santos Populares, e com aqueles pormenores que fazem uma boa história: coincidências, surpresa, determinação e comédia.
A primeira coincidência acontece quando Armando ouve alguém dizer que o então Presidente da República, Américo Tomás, vai presidir à cerimónia de inauguração do Tribunal de Vila Verde.
Tinha chegado da Califórnia há um par de dias à sua terra natal, Amares, quando ouviu no estabelecimento do pai, na “Feira Nova”, alguém comentar repentinamente que o Presidente da República da altura ia presidir à cerimónia de inauguração do Tribunal de Vila Verde. «Foi uma casualidade ter vindo a Portugal nessa altura», recorda Armando, agora com 86 anos.
Uma das razões que o fizeram voar dos Estados Unidos da América até Amares foi a de ajudar o irmão Joaquim a montar uma loja de fotografia – a Foto Kim. E esta é uma segunda coincidência por que reúne um ingrediente necessário para que hoje existam as fotos e o filme, de 15 minutos, em formato Super 8mm: ambos os irmãos dominam a arte da fotografia. Joaquim é profissional, enquanto Armando, conciliando o seu trabalho numa importante empresa norte-americana, é correspondente local de jornais luso-americanos e fotógrafo “oficial” do Consulado português na Califórnia.
Camisa às riscasJoaquim, com «uma personalidade tímida e recatada», levanta reservas à sugestão do irmão de se meterem à estrada para fazer a cobertura da visita de Américo Tomás a Vila Verde.
«Na altura, as deslocações de uma alta figura do Estado ao Norte do país eram um verdadeiro acontecimento, uma coisa rara. Ao contrário do que acontece agora, não era todos os dias que um Presidente da República saía de Lisboa para ir à província», diz Armando, justificando assim a insistência para que ambos, «em parceria», metessem mãos à obra.
A insistência (e a argumentação) convenceu Joaquim. E foi determinados que partiram em direcção à comitiva de Tomás, vestindo na «perfeição» a pela de autênticos repórteres fotográficos.
A deslocação da primeira figura da Ditadura ao Concelho vilaverdense incluía ainda uma curta paragem de 30 minutos na Ponte do Bico, em território amarense, uma «verdadeira cereja no topo do bolo» para os dois irmãos de Amares.
«Como se tratava de um acontecimento raro e uma oportunidade única de ver e fotografar a mais alta figura da Nação, não havia tempo a perder nem tampouco para mudar de roupa. Falei com o meu irmão, pegámos rapidamente no equipamento, eu com a minha câmara cinematográfica e ele com a de fotografia, e lá vou eu de camisa de malha de manga curta de cores berrantes, de amarelo e castanho escuro, para contrariar o protocolo do vestuário dos repórteres, de fato e gravata, que faziam a cobertura da cerimónia da inauguração do Palácio da Justiça de Vila Verde», recorda Armando com um largo sorriso.
É assim que, com a sua camisa às riscas berrantes, Armando recebe o Rolls Royce presidencial, como se vê na foto 1, destoando da indumentária “oficial” masculina da época: fato completo e gravata. A imagem também confirma o desenrascanço de Armando, que à boa maneira dos paparazzi trepou para cima de um bidão de gasolina que ali se encontrava para conseguir o melhor ângulo. Já Joaquim, o autor da imagem, «empoleirou-se num sinal de trânsito» e registou para a posterioridade a cena.
Na imagem 2, do Secretariado Nacional de Informação (SNI) – organismo de propaganda do Estado Novo – o mesmo cenário: Joaquim (assinalado a vermelho) e Armando registam a caminhada da comitiva de Américo Tomás sobre um «lindíssimo» tapete de flores em direcção ao Palácio de Justiça, um de cada lado do «aperaltado» fotógrafo do SNI, e a indiferença da PIDE, a polícia política do Fascismo.
A PIDE e os fotógrafos estrangeiros
Ainda hoje Armando está intrigado sobre a razão que levou os agentes da PIDE, sempre atentos a algo de estranho e fora da norma que fizesse perigar a segurança de tanta individualidade junta, não tivessem abordado a dupla de repórter amarenses.
«A minha camisa berrante e a nossa indumentária seriam razões mais que suficientes para que os agentes da “secreta” viessem falar connosco para saber quem erámos, o que fazíamos ali, para
que jornal trabalhávamos. Enfim, que nos investigassem como era usual naquela época», diz Armando.
«Mas nada! Para nossa surpresa deixaram-nos continuar a recolher imagens da cerimónia, num grande dia para a população de Vila Verde que há muito que queria ter o seu Tribunal», acrescenta. Armando não consegue explicar a «estranha» atitude da polícia política.
«Ainda me questiono sobre isso», confessa.
Avança, contudo, com uma explicação: «Provavelmente devem ter pensado que vestidos daquela maneira erámos repórter fotográficos estrangeiros, normalmente mais liberais nestas coisas, e por isso não nos chatearam…».
A barriga do senhor Governador Civil de Braga
Entre as individualidades que acompanhavam um Tomás escoltado pela PSP, além do Presidente da Câmara de Vila Verde, Fausto Feio, havia uma que se destaca pelo seu porte avantajado e gestos largos: Santos da Cunha, na altura já Governador Civil de Braga.
Armando Martins recorda a figura «quase cómica» do controverso político bracarense, sempre de braços abertos, afastando uma e outra pessoa, a abrir caminho, ora à frente ora atrás do Presidente.
A burlesca e pesada figura de Santos da Cunha não escapou aos olhos dos milhares de pessoas de todos as Freguesias do Concelho que, entre “Viva Portugal”, “Angola é nossa” ou “A Vitória é nossa”, assistiam curiosas à passagem da ilustre comitiva.
O representante do Estado no distrito bracarense suado, receoso que os seus óculos caíssem com o aperto da multidão e que «parecia estar em todo o lado», dava nas vistas.
«Santos da Cunha, com a sua barriguinha, esforçava-se ao máximo para que tudo corresse bem, que nada incomodasse o Presidente, mas sempre com muito esforço», conta Armando.
O fotógrafo não esquece a imagem daquele que foi também Presidente da Câmara de Braga: «Só a muito custo, o homem conseguia acompanhar o Américo Tomás e comitiva, que ainda por cima seguiu bastante depressa», lembra.
Publicado originalmente na edição de Agosto do Jornal O Vilaverdense
Fernando Gualtieri