As centenas de santuários e igrejas existentes em Portugal guardam milhentas de ‘estórias’ nos objectos que constituem o seu espólio, construído pelos devotos e peregrinos que ali os deixam em cumprimento de uma promessa ou a pedir a intervenção do santo ou a santa.
Assim, cada ex-voto, no seu silêncio, revela que em determinado momento da vida alguém encontrou na fé em Deus “a força que me mantém de pé perante as adversidades da vida” e a certeza que com “essa fé os sonhos se atingem, as batalhas se vencem e os milagres surgem”.
Por mais estranhos e até burlescos que alguns destes ex-votos e oferendas possam parecer, existe sempre um caso de vida, como a do homem que deixou uma moca acompanhada do pedido: “Ajudai-me a deixar de bater na minha
mulher”.
A Irmandade de S. Bento da Porta Aberta, em Rio Caldo, Terras do Bouro, conhece outros pedidos, incapazes de ocultar o grande sofrimento que existe por detrás de cada palavra: “Por favor, quero deixar de beber, mas o demónio tenta-me” ou “S. Bentinho ajuda-me a ser capaz de deixar de trair o meu marido. Eu tento, mas não consigo. Ajuda-me”.
Também aparecem doses de heroína e cocaína acompanhadas por pedidos para que o santo ajude “a deixar a droga” (o estupefaciente é entregue à GNR).
Mais correntes são os pedidos de emprego, saúde e dinheiro. Já as oferendas mais comuns são ouro, objectos pessoais, a seguir ao dinheiro e às velas. Muletas, bengalas e chapéus são às mãos cheias.
São também aos milhares os pedidos, escritos em todo o género de papel, que são deixados no interior das caixas das esmolas ou junto ao altar do bem-aventurado. Outros tantos, são os bilhetinhos de agradecimento. Todos vão religiosamente para um arquivo.
O Santuário de São Bentinho guarda uma enorme colecção de vestidos de noiva, ao ponto de, anualmente, a Irmandade realizar um desfile de vestidos de noiva com as ofertas…
SANTUÁRIO DOS BICHOS
O Santuário de Nossa Senhora do Alívio, em Soutelo, Vila Verde, é – como alguém já escreveu – “o santuário dos bichos”.
Um dos mais importantes locais de romaria e peregrinação do país, o santuário não leva a mal tal alcunha, não só por que todos as animais são filhos de Deus, mas por que qual ali não faltam, de facto, bichos. No caso, serpentes.
É ali que está a jibóia daquela historieta do homem que se sentou numa dessas serpentes para descansar, pensando que a bicha era um tronco de árvore.
Pois quem entra na Casa das Promessas no Alívio dá de caras logo com não uma, mas três jibóias.
A SERPENTE DA HISTÓRIA
A maior, a de cima, é a tal. Conta-se que no ano de 1818, um emigrante português, natural de Vila Verde, que estava a cortar madeira no Brasil, decidiu sentar-se naquilo que lhe parecia ser um tronco de árvore, mas que, subitamente, se começou a movimentar.
Quando olhou, o português percebeu que se tratava de uma jibóia de grandes dimensões e, na hora de aflição, a solução encontrada foi pedir forças a Nossa Senhora do Alívio para o ajudar a derrotar o animal.
As suas preces acabaram por ser ouvidas, já que conseguiu pegar na faca de mato que trazia à cintura e lutou com a cobra de uns cinco metros, até a matar.
Como forma de agradecimento à Virgem, decidiu enviar a pele da jibóia para o Santuário do Alívio. A partir de então, o santuário passou a receber peles de cobra oriundas de várias partes do mundo, onde portugueses que
estiveram em apuros apelaram ao auxílio divino, nomeadamente de combatentes da Guerra Colonial.
A lenda permaneceu com o passar dos séculos e, ainda nos dias de hoje, na Casa das Estampas do Santuário, conhecida como Casa das Promessas, se podem contemplar uma imensidão de graças obtidas por intercessão da Nossa Senhora do Alívio, destacando-se os exemplares de peles de jibóia.
Além das jibóias em exibição, existem outras guardadas num armazém, estas em pior estado de conservação. Contudo, à vista de todos estão igualmente diversas serpentes e cobras, algumas de origem nacional, dentro de frascos devidamente conservadas em formol.
O padre Carlos Lopes, responsável da Irmandade, conta que estes espécimes foram deixados à porta do santuário, sem qualquer identificação do ofertante.
O SARDÃO
A bem dizer o Santuário do Alívio, não é o único local de culto com bicharada.
No Santuário de Senhora da Lapa, em Sernancelhe, na Beira Alta, a vedeta não é uma cobra, mas um enorme crocodilo, embora também não falte uma cobra.
Conta a lenda que, há cerca de 300 anos, um militar da região, que vivia na India, teria sido atacado por um grande crocodilo. Aflito, o homem teria evocado a Nossa Senhora da Lapa para que lhe desse forças para o poder matar, tendo-o conseguido.
Em sinal de reconhecimento e gratidão pela ajuda, trouxe a carapaça dorsal e a pele e com estes elementos reconstituiu o bicho e ofereceu-o, depois de empalhado, ao Santuário, que chegou a ser um dos maiores da península Ibérica, a par de Santiago de Compostela.
Esteve em exposição durante muitos anos. Degradou-se de tal modo que não foi possível fazer o restauro em 2008. O que se vê é uma réplica. A pele original está no museu.
A partir deste ex-voto o povo criou mais uma lenda. Assemelhou o crocodilo à realidade local, chama-lhe o ‘sardão’. Um dia uma ceifeira foi atacada pelo bicho, pediu ajuda à Senhora da Lapa. O pedido foi correspondido. Mais tarde, com a ajuda de trabalhadores agrícolas o sardão foi morto e a pele foi oferecida ao santuário.
Conta-se ainda que, um dia, um caminhante adormeceu junto à capela e uma cobra entrou-lhe pela boca. O homem acordou invocou no seu pensamento a Senhora da Lapa.
A cobra imediatamente virou a cabeça para fora da boca e saiu, sendo depois apanhada e morta.
Fernando Gualtieri (CP 7889 A)