(NOTA PressMinho: Reproduzimos na íntegra – com a devida vénia ao DN e à jornalista Ana Bela Ferreira- a entrevista a Jean-Martin Rabolt, sociólogo do Instituto Português de Ciências Sociais da Universidade do Minho. “O papel de contra sociedade e de contrapoder assumido nos carnavais antigos perdeu-se”, é uma das frases mais polémicas do investigador francês.)
“Jean-Martin Rabot: “Os brasileiros devolveram-nos o Carnaval
Sociólogo do Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Minho explica que as tradições brasileiras do samba chegaram até nós pelos movimentos sociais entre os dois países. Defende também que o significado original do Entrudo se perdeu.
Como se foram mantendo as tradições pagãs do Carnaval que atualmente se celebra?
Nas sociedades primitivas e também na romana existiam rituais que celebravam o renascimento, em particular da natureza.
O ritual é uma maneira de introduzir uma ciclicidade na linearidade do tempo e de lutar contra a entropia do tempo que foge e contra a angústia que esta suscita.
Os romanos tinham as festas saturninas, em honra do deus Saturno, em dezembro; as festas do solstício de inverno, as do sol invictus, o dia do renascimento do sol invicto, fixado pelos romanos em 25 de dezembro, festas essas que mais tarde foram cristianizadas, dando origem ao Natal (Natalis, nascimento) dos cristãos; as festas lupercais, em fevereiro, etc.
Assim, os cristãos recuperaram as festas pagãs, como é o caso do Natal, do Carnaval, da Páscoa. Ou seja, o presente é sempre uma assimilação e uma reinterpretação do passado, num processo sincrético, onde se misturam constantemente tradições provenientes de culturas diferentes. É isso que explica a permanência das festas nos tempos atuais.
Portugal começou a importar as tradições do samba, embora se diga que o próprio Carnaval do Brasil tem também raízes portuguesas…
Sim, diz-se que o Carnaval brasileiro resulta de uma importação de Portugal, onde existiam carnavais, como os de Ovar e da Madeira. E os brasileiros devolveram-nos o Carnaval, sob a forma das tradições do samba.
Não há sociedade fixa no tempo, pois toda a sociedade se transforma em virtude das migrações e dos diversos contributos culturais que se devem às migrações, em termos linguísticos, sociais, mentais, de culinária, de festa.
Como é que se justifica a adesão deste tipo de Carnaval num clima e numa sociedade como a portuguesa?
O Carnaval é uma figura festiva universal que não pertence a ninguém e que por conseguinte é de todos. A maior parte dos brasileiros festeja o Natal com calor. O inverso verifica-se em Portugal, festeja-se o Carnaval com frio. As festas sempre se adaptaram aos climas e o tempo nunca foi um impeditivo para a festa.
Os festejos do Carnaval foram encurtados. São as contingências da sociedade moderna?
As sociedades atuais não dispensam tanto tempo para os grandes momentos festivos, até porque o rei clandestino da época, seguindo a expressão de Georg Simmel, é a economia, com os seus imperativos categóricos da produtividade e da competitividade.
Basta recordar que o calendário romano tinha 55 dias úteis, o resto do tempo era consagrado à celebração dos deuses, e que, na Idade Média, mais da metade dos dias do ano eram dias feriados.
É preciso acrescentar que o significado da própria festa do Carnaval se perdeu. As festas romanas tinham como função escorraçar o velho para dar começo ao novo, encenar o caos para restabelecer uma nova ordem, unir o povo à volta do seu mito fundador. Mesmo que o sentido originário da festa se tenha perdido, há um fundo antropológico que não podemos eliminar.
Encontramos ainda hoje elementos das festas antigas: mascarar-se, vestir-se com peles de animais, como nos carnavais trasmontanos. A encenação do caos e a inversão da ordem social vigente, o escravo que se torna rei, coisa que se verificava nas festas sáceas da antiga Babilónia, nas festas saturninas romanas, nos carnavais da Idade Média, onde a figura da Virgem era substituída pela da Eva, nos carnavais brasileiros (em virtude das grandes desigualdades sociais e raciais).
O papel de contra sociedade e de contrapoder assumido nos carnavais antigos perdeu-se.”