Luísa Alves, Carlos Barbosa e todo o clã Rodrigues – Manuel, o patriarca, Maria José e Mário – recordam à volta da mesa, numa noite fria de finais de Janeiro, a história e as estórias de 65 anos de vida do Grupo Folclórico de Vila Verde (GFVV), comemorados no primeiro dia deste ano de 2023. Em cada palavra, sente-se orgulho.
Ao contrário do que é comum a muitas colectividades, a ideia de criar um grupo folclórico não nasceu numa tasca enfumarada, à volta de comes e bebes. E esta ruptura com a “tradição” é a primeira surpresa.
Na verdade, o grupo surge quando António Augusto Costa, o “Maestro”, se apercebe que o reportório do Orfeão Vilaverdense, que fundara, é “curto” para um espectáculo inteiro. A solução foi juntar ao alinhamento das apresentações algumas danças e cantares do Concelho. Isto em 1957. É nesta data que se encontram as primeiras raízes do GFVV, que a 1 de Janeiro do ano seguinte formaliza a sua constituição.
Arregimentar tocadores, cantadeiras e dançadores não foi tarefa árdua, apesar de não existiram facebooks, twitters e instagrams.
«Fizemos uns “papelinhos” que distribuímos em Vila Verde, a convidar a população a participar no grupo. Foi um sucesso», recorda Manuel Rodrigues. Esta adesão era esperada? «Claro».
Na altura só os mais ricos tinham acesso à televisão, chegada a Portugal em 1957, e na melhor das hipóteses o povo tinha um rádio. O Concelho também não tinha qualquer sala de cinema.
«Não havia nada para fazer à noite», resume Luísa Alves.
Era também uma oportunidade de “eles” e “elas” conviverem, coisa que a moralidade do Estado Novo não apreciava. Os cafés eram, por exemplo, couto dos homens. Elas ficavam em casa.
E surge, então, a segundo surpresa. Conviver sim, mas não muito e com regras.
«Os ensaios dos homens e das mulheres eram separados. Os homens ensaiavam num local e as mulheres noutro. Só se encontravam no ensaio geral, em véspera de espectáculo, para fazer os acertos. Na época tinha que ser assim», conta Manuel, rindo-se.
Hoje não seria assim. Essa «grande adesão» não aconteceria. «Os jovens de hoje têm muitas mais solicitações», diz Maria José, lembrando que «a preservação das tradições precisa dos jovens». «Necessitamos de novas estratégias para conquistas os jovens», afirma. «A escola pode ter um papel determinante», acrescenta.
E o GFVV, o mais antigo e representativo grupo folclórico do Concelho e um dos mais antigos da região e do país, carece dos mais novos para continuar o seu papel de divulgação e preservação das tradições etno-folclóricas do Baixo Minho, alertam.
Da afirmação à consolidação
Não foi fácil ao GFVV afirmar-se. Na região quem mandava no folclore eram os grupos de Santa Marta de Portuzelo, em Viana do Castelo, e o de Gonçalo Sampaio, de Braga.
«Nessa época o grupo sofria de alguma falta de notoriedade. Estávamos “apertados” por esses dois polos», explica Mário Rodrigues.
Mesmo assim consegue sair das fronteiras do Concelho de Vila Verde. Logo no primeiro ano, 1958, apresenta-se em Caldelas, Amares, e no ano seguinte organiza para as festas concelhias o 1.º Festival de Folclórico de Santo António Luso-Galaica, agora “promovido” a Luso-Espanhol.
Em 1962 já está na RTP, no programa de Pedro Homem de Mello. Um ano depois grava o primeiro disco.
«A década de 1960 foi de afirmação do grupo. A consolidação acontece na década», diz Mário Rodrigues.
A década de 70 do século passado não é fácil, apesar do GFVV já ver mais que reconhecida a sua qualidade.
A Guerra Colonial provoca danos graves à colectividade. «Chegámos a não conseguir arranjar tocadores de concertina», recorda Carlos Barbosa. Quando a Revolução dos Cravos chega, o grupo está praticamente inactivo. Em 1975, ano do Verão Quente, suspende a actividade.
O folclore, como o fado, é apresentado como “cúmplice” do Estado Novo. Esta imagem, que a ditadura fomentou, na tentativa de se mostrar um regime do povo e para o povo, é fatal para muitas colectividades da altura.
Mário Rodrigues conta que o grupo sofre também com «a incerteza que se vivia na época e com as divergências políticas e partidárias que o período revolucionário provoca».
O GFVV não escapa a todos esta factores, mas sobrevive. Em 1976, está de regresso aos palcos.
Outro momento desse processo de consolidação acontece logo em 1977, com a criação da Federação de Folclore Português, de que o CFVV é sócio fundador. No ano seguinte volta à televisão. Em 1980 e 1988 participa no Festival de Folclore do Algarve, o mais rico e importante do país, e que é transmitido pela RTP.
Nos anos seguintes percorre de ponta a ponta a Espanha (Balneares e Canárias incluídas) e apresenta-se em vários países um pouco por toda Europa. Em 1998 está na Expo, de Lisboa.
O ano de 2001 é um marco importante na história do grupo, com a organização do 1.º Festival Folclórico InterNações, que decorre em Julho. O objectivo é mostrar a Vila Verde, povos, tradições e culturas de todo o Mundo.
Em 2011 está pela primeira vez no palco da Gala Namorar Portugal. Dez anos depois inaugura o Centro Etnográfico Interpretativo de Vila Verde (CEIV), onde tem a sede.
Só voltará a suspender a actividade em 2020, devido à pandemia de Covid-19. Sobrevive novamente.
Dentro das suas actividades de difusão do folclore, continua a realizar exposições de trajes e de instrumentos musicais, ao mesmo tempo que recupera e divulga tradições esquecidas no tempo como os Cantares de Reis, Cânticos Religioso-Populares, Dança do Rei David, entre outros. E claro, o vira, a chula e o malhão, a dança padrão de Vila Verde.
Registar legado
Depois de ter comemorado os 25 anos com a edição de uma revista dedicada à sua história, e o 50.º aniversário com o lançamento de um livro e um CD que reúnem o trabalho de recolha efectuado, agora para comemorar os seus 65 anos, o GFVV está a filmar, em Marrancos, um vídeo que será apresentado na Gala Namorar Portugal.
Maria José não se alarga sobre este projecto. «Na altura própria daremos mais pormenores», diz.
«Num Mundo onde predomina a tecnologia, não fazia sentido não recorrermos ao audiovisual para registar o nosso legado, as nossas actuações, as nossas tradições ou recriações», explica.
Com um subsídio de pouco mais de 2.000 euros atribuído pela Câmara, algum apoio da Junta de Freguesia e uma ou outra (rara) remuneração dada por participação em festival, o GVFF não entra em aventuras que esvaziem o cofre.
Assim, para este aniversário, apresenta mais uma edição do Festival Luso-Espanhol, novamente no sábado, o ponto alto das festas concelhias de Santo António, onde participam grupos portugueses de regiões variadas e grupos espanhóis, também de diferentes regiões.
Na agenda, lá para Julho, está inscrito mais outro encontro, o Festival Folclórico InterNações.
“Palco de sábado é nosso. Ponto final”
Pode parecer estranho, para não dizer mesquinho, que um palco esteja no centro de uma polémica que se reacende ano após ano por altura das Festas de Santo António.
É que há quem defenda que na noite de sábado, a noite “nobre” das festividades, o palco principal deveria ser ocupado por um outro espectáculo que não um festival de folclore. Os mais novos preferem uma banda da moda ou um artista de nomeada. Folclore é que não.
Mário Rodrigues recusa peremptoriamente qualquer intenção de abandonar o palco de sábado.
«Desde 1959 que o nosso festival se realiza no sábado. É já uma tradição que este encontro, que hoje em dia é reconhecido pela sua qualidade, aconteça nessa noite», afirma.
Mário sabe que noutra localidade «a noite de sábado seria ocupada por outra coisa qualquer», mas em Vila Verde o palco é por direito do folclore.
Queixa-se que existe «o mito de que é o nosso festival que não permite outro tipo de espectáculo. Não é verdade. A Comissão de Festas assim o decidiu». No entanto, recusa o palco secundário. «É muito fraco», justifica.
Maria José acrescenta outro argumento. «Temos direito ao palco porque o trabalho que realizamos com as gravações, com o som e com a luz são de uma qualidade que surpreende até os ranchos participantes. E esta qualidade só é possível no palco da Praça», sustenta.
«E os vilaverdenses deviam ter orgulho em ter o folclore numa noite de sábado», acrescenta.
Mário Rodrigues volta à carga. «O Baixo Minho tem ainda muito a aprender com o Alto Minho, que recorre à prata da casa e não perde tempo nem se preocupa com quem vem ou não vem. Merecemos o palco principal. E ponto final», remata.
Fernando Gualtieri (CP 7889)
Reportagem publicada originalmente na edição impressa de Fevereiro do jornal O Vilaverdense